Escolha bem o que vai para o lixo Revista Kuruma'tá, 2 de dezembro de 201930 de dezembro de 2019 Texto de Diego Franco Gonçales Não é que Elys tenha levantado do sofá — ela disparou. Passou tão rápido pelo corredor que liga a sala de TV à área de serviço que sua mãe, lavando louça na cozinha, disse “meniiina”, prolongando a sílaba central para alertar sobre os perigos da alta velocidade. Elys respondeu “velhiiinha”, sinalizando total controle e gratidão pela preocupação. Na área de serviço encontrou fácil o que precisava: sacos de lixo pretos dos grandes, flanelas, álcool gel, uma vassoura de pelo e pazinha. Tudo, menos a vassoura, foi acomodado num balde, e ainda com urgência – talvez mais – Elys atravessou de novo corredor e subiu as escadas. Entrou no quarto e fechou e trancou a porta. Como de costume, conferiu se a porta estava mesmo trancada virando bem devagar a maçaneta. Estava. Só então – como de costume – virou e olhou o quarto, o seu quarto, o mesmo de toda a sua vida, de todos os seus 29 anos. Decidiu começar pelas gavetas do criado-mudo — três. Puxou de dentro do balde um saco de lixo e sentou na beira da cama para abrir a mais alta das gavetas. Estando tão à mão no dia a dia, aquela gaveta era a mais abarrotada de todo o quarto; mas, também por esse fácil alcance, a maior parte de seu conteúdo era recente e, pela experiência de Elys, quase não oferecia resistência para ser jogado fora. Bom local para começar: uma espécie de treino, de esquentar dos motores, que daria maior segurança para quando ela chegasse às gavetas menos acessíveis e aos seus conteúdos que não aceitavam tão pacificamente o descarte. Mas antes… antes, o celular. Involuntária como a circulação sanguínea, num só movimento a mão de Elys já levava o celular para a frente do rosto e o polegar desenhava um polígono que fazia surgir ícones de aplicativos sobre a imagem de fundo — uma selfie dela. Ela abriu o Facebook e imediatamente deslizou a timeline, já que a primeira postagem que apareceu — um gato montado numa cabra, compartilhada pela tia que mora em outro estado — já tinha sido vista, bem como a segunda, a terceira e a quarta – uma montagem do Moro, numa careta estranha, com as palavras “acabou pra você, juizeco!”; um vídeo de Fuscas, Brasílias e Del Reys circulando no centro da cidade há mais de 30 anos; e um aviso de que a Beatriz, que ela nunca conheceu pessoalmente, tinha curtido uma postagem qualquer na página “Red Hot Chilli Peppers Maníacas”. Ela rolava as postagens para cima, reconhecendo num átimo cada uma delas; todas já vistas lá no sofá, nas duas últimas horas, num frenesi automatizado que vencia a capacidade dos algoritmos apresentarem novos posts; os minutos de falso interesse passando rápido e devagar ao mesmo tempo, o Moro e a cabra e a Beatriz de novo e de novo, até que eclodiu nela a decisão de não passar o resto das férias daquele jeito, alternando celular no sofá e masturbação no quarto, e o pensamento vou é jogar coisas fora disparou Elys do sofá. Batidas na porta assustaram Elys, desprevenida. “Elys, está tudo bem?”, a mãe perguntou. “Tão rápido você passou por mim, e agora… tranca-se no quarto?” O célebre idioma de dona Norma. “Professooora”, disse Elys abrindo a porta. Apertou as bochechas da mãe: “Fechei a porta porque vou limpar meu quarto e…” – Elys olhou o quarto, fez um gesto de quem enfim deixava tudo para trás e continuou – “…e dar fim numas coisas. Vai ter pó.” Dona Norma se alarmou. “Certo. Se haverá pó, então ficarei longe”, disse a mãe, imiscuindo entre as frases da oração um sabor lógico, ao modo como quando ensinava em suas aulas de português no colégio particular. “Escolha bem o que vai para o lixo, sim?” — a delícia de conjugar bem o imperativo. “Estarei lendo na sala, na eventualidade de você precisar de algo.” Elys voltou à gaveta, ansiosa para trabalhar nas sensações que mudariam aquela tarde e aquelas férias. Papéis predominavam, mas houve também pilhas, grampos de cabelo e bolachas de chope. As bolachas ficaram, mas todo o resto foi para o saco preto. Elys viu sua obra, uma gaveta limpa e organizada, e pensou: “Aí sim”. Aquela visão e o cheiro de álcool gel esvaneceram o pressentimento de repetição do fracasso das férias do ano anterior. “Mais uma vez não dava, né?”, Elys disse para a flanela. Sentiu-se corajosa e com vontade de ouvir música, e deu play pelo celular — finalmente, Queens of The Stone Age, que ela vinha evitando desde o começo do ano. A banda a lembrava o sexto colocado na enquete da “Barba do Ano” da página “Barbudeiras”: o Jason. Elys é uma das moderadoras da página, e umas das artífices de um encontro da comunidade num camping litorâneo; um réveillon do que desse e viesse entre barbudeiras e barbudos. Ela e Jason se conheceram lá, e desde o primeiro dia do encontro houve flerte entre os dois, mas esse flerte, tímido, contido, indeciso, só evoluiu para algo mais na meia-noite da noite de ano, quando Elys puxou Jason para sua barraca, o colocou sentado de pernas abertas no colchão inflável, abriu o velcro da sua bermuda e, em lágrimas, o chupou em sincronia com os pipocos dos fogos de artifício. Era muito choro mesmo, em parte justificável, em parte inexplicável: um choro que ela já conhecia, provocado pela emotividade de cada 31 de dezembro, mas também um choro novo, um choro de esteta, porque de algum modo Elys sentiu ser muito belo enfiar na boca um pau tão decididamente agarrado. Implodindo de constrangimento por trás de óculos escuros, ela o evitou no restante dos dias do encontro, aprofundando o mal-estar a ponto de Elys, estendida numa canga de frente para o mar, decidir que nas próximas férias ela não faria além de ficar em casa. A próxima gaveta abriu mais fácil. Na superfície, pacotes de absorvente, caixas de anticoncepcional, tudo vazio, tudo direto para o lixo. Nos estratos inferiores, misturavam-se tufos de cabelo vermelho, que Elys pinçou enojada com a ponta do indicador e do polegar, e resíduos de lápis de cor apontados, ingressos de cinema e guias de pagamento de tributos federais da empresa em que ela é uma faz-tudo administrativa. Ubre: as guias de pagamentos acenderam a palavra na cabeça de Elys. O celular de novo, inconscientemente, à mão; o polígono, a selfie, os aplicativos. Elys pausou a música e ficou ouvindo o silêncio da casa. Os papéis do trabalho ao seu lado, na cama. Ubre. Ela abriu o navegador. Ubre. Um site pornô. Ubre. Digitou na área de busca huge tits. Enfileiraram-se na vertical frames de vídeos com mulheres, algumas sozinhas, outras com homens. Ela correu a tela até encontrar uma desacompanhada e como ela — natural, sem silicone — e tocou naquele rosto muito norte-americano para que o vídeo começasse. Não se interessou muito pelos primeiros momentos do vídeo, em que closes extremos faziam partes ainda vestidas da mulher ocuparem todo o retângulo do celular. Elys adiantou o vídeo até a metade e murmurou “hmmm” ao ver que naquele ponto a mulher já nua despejava em si mesma um óleo translúcido. Reclinou-se no travesseiro, uma mão segurando o celular e outra deslizando para dentro da legging verde. Elys suava quando se satisfez. Recompôs-se voltando roupas de baixo e de cima para seus lugares e sentou na cama para ouvir um pouco a casa. Silêncio como se só ela existisse. Ao seu lado, os papeis do trabalho. Ubre. Elys sentiu uma repulsa apertar a garganta. Como a mesma palavra podia agora ser completamente outra? “Tá louquinho por esse ubre, hein?”, dissera o chefe de Elys para o vendedor de móveis quando ela passou por eles na calçada, numa saída para o almoço meses atrás. Ela não sabe se o chefe não se importava que ela ouvisse, se fizera aquilo de propósito ou por descuido, mas a reação do vendedor fora inequívoca: um empurrão no velho, seguido de “Tá maluco!?” Ela seguiu o caminho pensando: “Tadinho”. O vendedor é apaixonado por ela. Músculos hipertrofiados estufam a camisa dele no limite do esgaçar nas quatro vezes diárias em que Elys passa na frente da loja e ele solta um cumprimento desajeitado para ela. Nunca que o vendedor aprovaria aquele comportamento do chefe de Elys, o que a agradava, mas não havia o que a inclinasse a ceder a ele. O principal lhe faltava: barba. E não tinha barba logo do pior jeito, que é não tendo mesmo — rosto imberbe não dava. Assim ubre entrou no vocabulário de Elys. Seja evocado por algo ou alguém, seja por geração espontânea, quando a palavra surge, algumas vezes funciona como um gatilho para o ressentimento pelo local de trabalho que ela (“formada em faculdade!”) sente ser baixo demais para si, mas de onde não consegue se desvencilhar, e em outras vezes é um chamado autoerótico que a lembra do poder que exerce com seus “bebezões”, nome que deu aos próprios seios, e que a lembra também da atração proibidinha que sente por bebezões alheios. Guardou na bolsa os papeis do trabalho. Um saco de lixo já estava completo. Elys o amarrou e encostou na porta do quarto. Agora vinha a última gaveta. Uns poucos CDs deslizaram uns sobre os outros com o movimento da abertura e vieram bater à frente da gaveta. “Nuestro amor” foi o primeiro que Elys pegou para olhar, uma relíquia do auge da sua adolescência, e o refrão “Y es así, así es, Y no hay nada que hacerle” começou a tocar em sua cabeça. Uma passada de flanela fez o acrílico refletir o rosto de Elys, e ela viu a correspondência exata entre seu tom de cabelo e o de uma das meninas do RBD; assim hoje como há treze anos. “Filho da puta”, pensou no chefe. “Nojenta”, pensou em sua baia no trabalho. “Mereço mais”, enxergou a si mesma saindo de prédios de vidro, esperando o semáforo fechar ao lado de uma multidão bem-sucedida. Por baixo dos CDs, encontrou um cartão de visita. Uma oficina de alinhamento de pneus à qual levou seu carro uma vez. Um lento foguete entrou em ignição dentro de Elys. Na primeira vez em que foi à oficina, o dono não a atendera. “Só com hora marcada”, ele dissera na ocasião. Elys foi se acomodando novamente no travesseiro. Cheio de idiossincrasias, o mecânico a fizera retornar outro dia, e quando enfim a atendeu, colocou Elys para ajudá-lo no serviço enquanto monologava sobre sua ex-carreira de encarregado do setor de pneus em uma montadora multinacional, empregão que largou para ter tempo de praticar corrida de rua, sua paixão. Elys segurou o cartão sobre o rosto com uma mão. A outra já estava por dentro da calça. As letras vermelhas sobre o papel com manchas de graxa foram fundo em seus olhos. “E hoje não quero ninguém me enchendo o saco, empregado, patrão. Nem cliente hahaha. Ninguém. Faz um favor, ruiva, pega aquela chave pra mim.” Dessa vez, Elys escorria por tudo que é lado quando terminou. Estava nua por completo, o lençol embolava por baixo de seu corpo e o cartão da oficina, esmagado, tinha virado uma bolinha de papel no centro da sua mão. Ofegando, ouviu uma descarga no andar de baixo, e o tornozelo da mãe estralou ao sair do banheiro. Ainda nua, Elys pegou o celular. Polígono, selfie, Facebook. “No que você está pensando, Elys?” Ela sabia exatamente. Escreveu “O Q FOI ISSO” e tocou em “Publicar”. Foto: Pxhere A CaraguatatubaContoDiego Franco GonçalesFicçãoLeituraLiteratura