A letra A de Vinícius Terra | “Máscaras de azulejo escondem o desejo” Revista Kuruma'tá, 21 de agosto de 202021 de agosto de 2020 Texto de Toinho Castro Devo dizer que num vão de ignorância eu não conhecia o Vinícius Terra, nem seu trabalho, e esse é o grande encantamento da arte… a descoberta. Estou sempre atento, de ouvidos e olhos abertos, para não ficar nadando no mesmo mar. E adentrar o mar que esse artista me abre hoje nesse dia frio e chuvoso, de um mundo em indefinida quarentena, é um alento de vozes e imagens. Um alento de palavras nesse país movido pela língua portuguesa… que eu já ia dizer que Vinícius usa como instrumento, mas não é isso, não é instrumento. É essência, coisa entranhada na alma e nas demandas da vida. Lançada no álbum Eles não sabem a minha língua, Máscaras de azulejo é, composição do Vinícius em parceria com o beatmaker 2F U-Flow. Trançada delicadamente numa ponte harmônica com a dupla portuguesa Lavoisier num belíssimo videoclipe, Máscaras de azulejo nos chega agora num videoclipe inspiradíssimo, dirigido e produzido de Victor Fiúza (diretor do clipe “Ok Ok Ok”, de Gilberto Gil e de documentários como “Racionais MC’s: Uma História Musical” e “Quatro Dias Com Eduardo”). Em preto & branco de renovar o fôlego, a costura fina de imagens produzidas por diversos artistas mundo afora, num jeito de superar as limitações do mundo em pandemia, amplia a dimensão da canção, recarrega de energia sua narrativa. O silêncio imposto ao feminino nessas travessias atlânticas de que se fez nossa história de nação. Sou a letra A – última: Flor-do-Lácio, primeira a ver seus passos; Passeio, olhar no passo, teu seio alimento, embaraço; A bruxa na Inquisição, transportada à escravidão; A mucama a olhar pro chão, cruz, caravela, distorção. História mal contada, a roupa mal passada; Garganta amordaçada, carne estrangulada; Retalhada, calada, abafada, abusada, judiada, malvada, desejada, mal amada, mas… Eu sou aquela… Eu sou a fera… A trela, a outra, a cela; Índia, serra… Ásia, ilha, África, bela… Península, planície, praia, favela. Ela: Guarani, Tupy, Kaiowá à espera de quem nunca virá, nunca dirá, nunca amará, Areia, terra, água, mar, ar… Em falta, na boca de quem prova Falta trova, rainha? Eis aqui tua prova… Escuto e vejo, presencio a força desse trabalho dilacerado e dilacerante. Que grande oportunidade me é dada de estar no lugar e no tempo de músicas assim, sem medo, sem meias palavras, sem atalhos. Impossível não ser tocado e chamado à reflexão, de ter que olhar para si mesmo e rever, continuamente, o próprio papel nessa história. Como desfazer esses nós da alma? E esse silêncio transbordante de palavras, represadas, nos movimentos violentos da colonização, da escravidão, dos porões, dos quartinhos de fundo, do fundo, do murmúrio. Florbela Espanca, Cora Coralina, Carolina de Jesus, Noêmia de Sousa Alda Lara, Cecília Meireles, Filomena Embaló, Vimala Devi, Manoela Margarido… Sou sim: em si, em mim, em ti! Sou todas as mulheres que li, ouvi, senti! Sou cria das entranhas, filhas, irmãs Rara rima, bandeira, poesia, novas manhãs! Máscaras de azulejo. Escuto e vejo emocionado. De novo e de novo, em looping, para fixar esses versos e essas imagens. Para não esquecer. Máscara de azulejo em todas as plataformas E agora é hora, para mim, de mergulhar no trabalho de Vinícius Terra com gosto, com a sensação incrível de ter descoberto algo poderoso. A DiscosDiscotecaMúsicaMúsica BrasileiraToinho CastroVinícius Terra