Um amor para dormir Revista Kuruma'tá, 22 de setembro de 202011 de março de 2021 Texto de Maria Cristina Martins – O auge da intimidade é dormir junto, minha filha! – dizia minha avó. Vovó usava o verbo “dormir” como a Bíblia usa o verbo “conhecer”: no sentido sexual. Às quatro da manhã, com um copo d’água na mão no meio da cozinha, pensava mais uma vez que, para mim, o auge da intimidade é mesmo dormir junto. Só que no sentido literal. Julia Roberts era uma prostituta em Uma linda mulher e não podia beijar Richard Gere na boca. O beijo era o estopim para uma possível paixão, e uma prostituta não deveria nunca se apaixonar por um cliente. Pois, para mim, o estopim é conseguir adormecer ao lado de um homem. Talvez apenas numa ordem diferente: conseguir adormecer ao lado de um homem mostra que estou apaixonada. Mas, quando os personagens do filme se beijam, já não estão apaixonados? Isso eu sei hoje, depois de vinte anos de atividade sexual. Primeiro veio o comportamento repetido; daí, a percepção e a tentativa de análise sobre ele. Não é racional. Não disse para mim mesma que nunca deveria adormecer ao lado de um homem, mesmo que tenha acabado de transar com ele. Tampouco recebi esse conselho de alguém. Já que transou, que mal há em dormir depois? É o que a sociedade pensa. Mais do que isso: sempre fui mal vista quando quis ir embora depois do sexo, ainda que o parceiro, em seu íntimo, também quisesse. Pior ainda quando pedia para o rapaz partir. Uma visão imediatista diria que tenho medo do que o homem poderia fazer comigo. Afinal, ao dormir, ficamos no nosso estágio mais vulnerável. Não que seja um medo infundado. Cada vez mais me parece bem verossímil acontecer uma violência nessas condições. Mesmo em casos de violência contra homens, os agressores costumam ser homens. A questão é que tenho essa dificuldade desde o início de minha vida sexual, quando era uma boboca que aceitava a predominância do falo, uma idiota que passou cinco anos seguidos transando com apenas um homem que não me fazia gozar, e que me traía com qualquer mulher que caísse na sua lábia. Acredito que o conhecimento que tenho hoje sobre o que um homem é capaz de fazer com uma mulher, mesmo quando diz que a ama, reforçou meu receio de dormir ao lado deles, mas não é esse o motivo original. Eram quatro horas da manhã, o homem na minha cama dormia desde as duas. O encontro foi bom, começou cedo, por isso acabamos dormindo cedo. Também não somos mais tão jovens. Quer dizer, ele acabou dormindo cedo. Eu rolei na cama, tentando fazer o mesmo. É impressionante como insisto em algo que sei que não funcionará. O peso mais pesado da esperança. Quando vi que não conseguiria mais uma vez, levantei, fui fumar um cigarro, ler um livro, beber um copo d’água. Pensava sobre o assunto, quando me lembrei dele. Assim, de repente, me veio à cabeça o colega de faculdade com quem havia dormido, no sentido literal, no mesmo colchão em um encontro de estudantes, devido à escassez do material. Consegui dormir ao seu lado não como um bebê, porque bebês em geral não dormem pesado – quem inventou essa expressão não tem filho! Consegui dormir como alguém que toma um ansiolítico pela primeira vez. Puxei pela memória… Ele era um dos três homens com quem havia conseguido dormir até hoje. O outro foi meu marido por alguns anos. O terceiro, nunca mais vi. Pode-se alegar que havia mais gente na sala. Mas houve pelo menos outras duas situações similares em que meu comportamento foi o usual. Peguei meu celular e procurei aquele colega nas redes sociais. Talvez seja mais importante usar essa minha característica para reconhecer um amor do que ficar tentando fazer análises sobre os motivos. Se tivesse tido essa esperteza com o canalha com quem namorei por cinco anos, não teria perdido tanto tempo. Se tivesse me lembrado desse colega antes… Quando Julia Roberts e Richard Gere se beijam, eles já estão apaixonados! No mínimo, será alguém com quem poderei dormir depois de transar. Isso é muito importante para as ocasiões em que preciso trabalhar no dia seguinte. Tomara que ele esteja solteiro e também goste de mim. Arte de Maria Cristina Martins A AmorContoCrônicaMaria Cristina MartinsMemória
Amei esse texto quando o li pela primeira vez – saindo do forno – e agora ao reler só amo ainda mais sua escrita! Responder