Três da madrugada, um poema inédito de Braulio Tavares

Outro dia fizemos, eu, Aderaldo Luciano e Numa Ciro, um bate-papo ao vivo, no Facebook da Kuruma’tá, conversando sobre a obra de Braulio Tavares e sua presença no cenário da cultura brasileira, isso por ocasião dos seus 70 anos e também por conta da campanha de financiamento coletivo, para edição dos seus livros A espinha dorsal da memória e Mundo fantasmo, pela Editora Bandeirola. Ele não participou da conversa mas acompanhou tudo e lá pelas tantas mandou a seguinte pergunta: Posso enviar um poema inédito para o saite?!

Ele se referia ao saite que a Kuruma’tá organizou em homenagem a ele, com textos de muitas amizades. Bem, a resposta a tal proposta, naturalmente, foi Claro! Sempre vamos querer um poema inédito do Braulio. E aqui está…

Toinho Castro, editor


Três da madrugada

Já são as três da madrugada.
Estou bebendo na cozinha.
O dia pertence a todos;
a noite é minha.

Entre um copo cheio e um vazio
entre uma carne quente
e um vinho frio
meu olhar corre as paredes
como se acompanhasse
uma lagartixa
que ninguém mais vê.

E chega à lata de lixo
onde, por baixo da tampa,
emerge a cauda de um bicho.
Uma cauda que se mexe
e diz: “Não morri ainda.”

Um rato? Um gato? Um cachorro?
Um bicho que diz: “Não morro,
não me entrego, não desisto,
sou teimoso como um Cristo
que volta, ao terceiro dia.”

Que carrasco deixaria
um crânio decapitado
dizer:
“Não vou ser jogado
dentro da vala comum,
pois eu não sou qualquer um;
sou Eu, sou um indivíduo,
não sou o mero resíduo
do que foi vivo e morreu;
sou isto, sou sempre um Eu
que não se repetirá,
e glória maior não há
do que o mero existir,
o perceber, o sentir,
o responder, o falar,
o ser, o haver, o estar.

“Ser parte do turbilhão
onde a Carne e a Razão
desenham seu pas-de-deux;
onde o diabo e o bom deus
soldam a sua aliança;
onde a guerra aspira à dança
e a dança dilui a guerra;
e o corpo é mais um planeta
sacrificado à Ideia;
onde a Terra é uma carne
queimada por Prometeu?
Quem lhes pergunta sou eu,
cabeça decapitada;
um corpo que não é nada
e retorna à terra fria…”

Que carrasco deixaria
uma cabeça falante
dizer tais coisas diante
da multidão boquiaberta?

Não, não! A coisa mais certa
é queimá-la em mil fogueiras;
cabeças são feiticeiras
botando o mundo em perigo:
porta-vozes do inimigo,
cassandras da perdição,
arautos do armagedon…
Não! Que ninguém ouça o som
dinamitando os contentes.

Pois entre os seres viventes
somente uma lei vigora:
a de ainda estar vivo
para ver romper a aurora.
Viver; viver o momento
ter aceso o pensamento
ter o corpo em movimento
mesmo que o mundo se acabe.
Viver a vida de quem
“tira de onde não tem
pra botar onde não cabe”.

E assim passa meu olhar
e chega à lata de lixo
onde momentos atrás
eu vi o rabo de um bicho…
Era uma tira de plástico,
escuro, comprido, elástico,
que um vento qualquer mexeu.
Não era bicho nem nada.
Era a cabeça cansada
de pensar tanto; era Eu.


Participe da Campanha de financiamento coletivo dos livros A espinha dorsal da memória e Mundo fantasmo, de Braulio Tavares

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