O espelho da bela adormecida e o diabo é o aborrecimento Revista Kuruma'tá, 19 de outubro de 202022 de outubro de 2020 Texto de Ricardo Seiça Salgado Membro do grupo informal auto-organizado Crítica de Fuga, para o Festival e Laboratório Internacional de Artes Performativas – Linha de Fuga | 12 Set. a 4 Out. 2020, em Coimbra. “Conheces a história de uma mulher? Uma mulher forte como um touro que disse que só casaria com quem a derrubasse. Com quem a atirasse ao chão. Durante anos a fio apareceram muitos pretendentes. Muitos visitantes. Chegaram de todas as partes do mundo. Vinham fortes. Partiam fracos… Ninguém o conseguiu, ninguém a conseguiu derrubar.” (www.bela-adormecida.com). Foto 01_ bela adormecida em Città Aperta, de Alain Michard. Foto de Miguel Cunha. Diana de Sousa parte do imaginário da bela adormecida e apresenta a versão duracional da performance que se metamorfoseia em vários formatos que por sua vez trabalham diferentes relações com os espectadores. Existe a versão de palco que não vimos no Festival Linha de Fuga, mas ouve a surpresa de uma versão performance-acontecimento montra, inserido na Città Aperta de Alain Michard. E a versão duracional, uma performance-instalação que admite apenas uma pessoa-público e se desmembra e estilhaça do e no conto homónimo agora rescrito da bela adormecida, adensando-lhe o erotismo, o voyeurismo e performer-público mútuo, e a relação que desfabula a mulher da sua expectativa ruído. Estamos no meio de uma teia de protocolos a cumprir para o encontro, entre o controlo das posições que cada um toma, tu e a bela adormecida, jogando a vigilância dos estereótipos da cultura dominadora patriarcal. Da psicologia do fantástico se faz real sociológico em cada um no imaginário, como o conto te posiciona dentro da performance, ritualizando o encontro, jogando com o poder entre géneros, e de como ele sobrevoa e atua em todos nós, mas atualizando. A bela adormecida e a pessoa-público vão estar num quarto vazio, já veremos. Tem os contos da tradição popular, seja a Bela Adormecida, a Branca de Neve, a Cinderela, várias princesas e fadas e sempre uma que toma o papel do acontecimento de uma força ruim opressora, talvez voz herdada de um campo energético dorido, privando a princesa disto ou daquilo, reproduzindo a jusante e a montante (e é esse o problema) a figura de retórica (que é poder) da mulher vulnerável, frágil, mulher do lar, como o machismo objetifica a mulher, como no sistema patriarcal, submissa. Na encruzilhada (meia-noite), um sono profundo imenso e a bela adormecida entra então no estado de entre mulher fábula e desfabulada, nessa liminaridade que habita o bosque, aparentemente estéril mas que agora se joga como potencial emancipação, a partir da bela adormecida que se te apresenta. Do conto tem a performance em duas fases, a preparação do encontro (em chat) e o encontro propriamente dito. Nunca, nem bela adormecida, nem pessoa-público sabem da identidade real de ambos até ao derradeiro encontro. Spooky! A marcação é feita pela produção que pede sigilo, e para entrar no chat é-nos pedido pela produção para inventar um nickname para acertar os detalhes do encontro. Já no chat é-me perguntado como gostaria que a bela adormecida se apresentasse. Ups!_ o que se passa na cabeça de quem vai entrar no quarto de uma bela adormecida por vir? Parece às tantas que a bela adormecida faz uma espécie de questionário-casting, colocando eu-pessoa-público nessa posição de vulnerabilidade. Jogo-dominação. É denso e nonsense estar a falar diretamente com a bela adormecida online. Sai um sorriso que também é atrevido. Somos chamados aos “protocolos” que este encontro pressupõe ou inclui, como o facto de ir ser filmado, de haver um vigilante que nos recebe e clarifica de todos os procedimentos, e encaminha ao quarto. Há algo de kafkiano em tudo isto. Há num plano acima na escala do social, do lugar político da mulher no sistema de expectativas do senso comum e que o conto conta, e há a escala da autobiografia, o si próprio ou as suas máscaras, nesta trama em que és e estás colocado. Mal sabe que fala com um príncipe libertário, descontraio. Diz-nos afinal no chat, “o engano é pensarmos que um beijo resolve tudo. Um engano. Tudo isto é um engano. Não me acordes.” Spooky! O diabo é o aborrecimento, penso de Peter Brook. A bela adormecida acaba de me aceitar para pessoa-público-performer. Desejo do desejo ou desejo da coisa em si como ela afinal é e para quê? Há um desfoque do desejo que é aqui colocado em jogo e que se quer sempre refocar no encontro. Performance laboratório. O encontro consiste, então, em passar uma noite num quarto privado com a bela adormecida, das 0h às 07h do dia seguinte, altura em que toca um despertador e a performance tem impreterivelmente de terminar para ambos. Nunca nesse período a pessoa público poderá sair do quarto, o que também determinará para ele o fim da sua prestação, diz nas regras. No quarto, o rigor com que a instalação viva é montada embate em múltiplas direções. São camadas em suspenso, o sono e a mulher da história tradicional, a liminaridade ritualizada do encontro na tua posição no jogo performance. A performance chama-nos. Planos de significado emergem da história dos objetos expostos e o modo como estão meticulosamente organizados suspendem o pensamento na improvisação a que fomos chamados a fazer. Neste beijo (in)desejado totalizador, que meta-beijo possível, a partir dos papéis culturais que sobrevoam o nosso imaginário e que comandam o pensamento do senso comum e que metemos em prática no nosso verdadeiro backstage on the road? Tudo está a ser gravado, por isso o diabo é o aborrecimento. O raça do teatro vida. À maneira do ritual a performance simula com as suas regras prescritivas e protocolos a seguir. E qualquer ritual amplifica, mesmo que simulado pelo jogo. Encapsulados na anterior bela adormecida estamos, mas a experiência do bosque surte um novo efeito, porque a bela adormecida observa, mesmo em sono profundo. Entramos neste filme, estamos a ser filmados, e observados observando. Nossa!_ o risco de aborrecer a bela adormecida, ou a mulher múltipla não objeto do desejo imposto é a performance. Alguém entra num palco vazio sobre o olhar de outro, diz Brook, é o mínimo para haver teatro. És protagonista, instalam-te nesta performance instalação. Ups! Que espelho perante a bela adormecida quando lhe passas em frente? Bela adormecida aparecida e desaborrecida, o diabo é o aborrecimento. Este texto integra a coletânea produzida pelo grupo Crítica de Fuga, que acompanha os trabalhos dos artistas e as atividades do Festival Internacional de Artes Performativas – Linha de Fuga. A ArteCoimbraCríticaCrítica de FugaFestival Linha de FugaPerformancePortugalRicardo Seiça Salgado