Por Aderaldo Luciano —
Quem sai de Campina Grande, a Rainha da Borborema, na Paraíba, com destino a João Pessoa, capital do estado, a meio caminho entre uma cidade e outra, encontrará uma localidade chamada Cajá. Ponto de parada para um café com a famosa tapioca do Irmão Firmino, é uma espécie de entroncamento rodoviário, pois quem entrar, um pouquinho antes, à direita, vai chegar em Itabaiana, terra de Sivuca, e, quem entrar à esquerda, chegará em Gurinhém e daí com mais uns poucos quilômetros estará em Mulungu. E é essa cidade, esse pequeno município, situado na região de Guarabira, que nos interessará.
Não se entedie, leitor, com essa pequena introdução geográfica, é apenas um pretexto para falar do poeta Severino Honorato, nascido naquela região, no Sítio Cipoal de Utinga, em fevereiro de 1963. Naquele tempo, o clima ameno, as chuvas perenes, ofereciam um certo caudal ao Rio Mamanguape, cujo leito passa mais adiante, na cidade de Alagoinha. Essas mesmas chuvas fortaleceram o verde, presente nas árvores, nos roçados, nas veredas e caminhos, nos capins e nas capoeiras. Consequentemente a fauna também se fazia ver e ouvir, os animais pequenos e os de criação.
O próprio nome da cidade é retirado da grande árvore conhecida como mulungu. O desenho dessa planta, que sobe aos céus e se espalha como ícone do afeto, povoa o horizonte e quem o vê de longe já sente o seu poder, medicinal que é. Severino Honorato nasceu aí nesse meio, vivendo as vertentes e as caminhagens, ouvindo os pássaros e se assustando com os trovões no tempo de inverno. Esse contato com a Natureza, sagrada para nossos ancestrais, ensinamento de pais e avós, fortaleceu e fez perdurar nele o cuidado, o carinho e o bom trato com o ambiente que habitava. Quando encontra a poesia em sua vida, imediatamente esse motivo lhe habita os versos:
Voltando um pouco no tempo
Num cenário sem magia
Em versos e estrofes faço
Pelo olhar da poesia
Confissões e desabafos
Sobre a nossa Ecologia.
É assim, com esse retorno à primeira infância, que ele inicia o folheto Salve a Natureza – Inclusive o Ser Humano. A magia de sua antiga vivência sofre um corte com a comparação com os dias atuais. E isso fere o poeta, no corpo e na alma. Oriundo do engajamento nas lutas sociais, Honorato, com o poder poético na voz e na letra, observa as contradições da Humanidade. Quando falamos do Rio Mamanguape, perto de sua cidade, rio perene naqueles tempos, nutrido pelas chuvas e pelas matas ciliares nas margens de seu leito, foi por percebermos nesse mesmo poema sua preocupação geral:
Não há mais rios perenes
Serpenteando as cidades
Aquíferos são atingidos
Por ações de insanidades
Mananciais de água doce
Sofrem ações de maldades.
Mais adiante, numa reflexão para si e para os leitores e ouvintes de seus versos, o poeta Honorato abre sua maleta de observações e conselhos para um mundo melhor:
Quem agride a Natureza
Seu conteúdo destrói
Por impulsos da riqueza
Sua fortuna constrói
Mas pagará alto preço
Vilão que se diz herói.
No segundo volume de Salve a Natureza – Inclusive o Ser Humano, a reflexão vai para além da denúncia sobre a agressão ao meio ambiente. Nesse volume, o poeta pensa na mão humana adulterando os genes naturais para a produção de grãos em longa escala. Os alimentos transgênicos tomaram conta do agronegócio, movido pelo capitalismo enlouquecido. Está já na abertura do seu poema:
Querem alterar a gene
das células da natureza
a Ciência está criando
Gene livre de impureza
mas esquecem os cientistas
que as melhores conquistas
são práticas da singeleza!
O conhecimento das regras do cordel, poesia nascida nos rincões nordestinos, oferta a Honorato certa facilidade para a transmissão de sua mensagem. O abraço que o cordel lhe deu é devolvido com maestria nos versos, na métrica e na rima. Ele sabe utilizar o poema para a reflexão, para criar o que nós, estudiosos e observadores dessa forma poética genuinamente brasileira, chamamos de cordel ensaístico. Porque o que Honorato escreve nesses dois volumes de Salve a Natureza – Inclusive o Ser Humano é um ensaio ecológico no qual pensa, reflete e promove o bem-estar social a partir do respeito e cuidado com a Natureza:
Tá na contramão da História
extração sem garantir
plena sustentabilidade
fazendo a vida imergir
nas profundezas da lama
na contaminada fama
que faz o justo sentir!
Os dois folhetos são de 2016, edições do próprio autor, distribuídas em feiras e escolas e eventos. Quando, em 2020, o poeta escreve Carta ao Planeta, a partir das constatações catastróficas sobre a vida na Terra, um pedido de perdão, em nome da Humanidade, é o seu tema principal. O poeta se sente cúmplice da tragédia ambiental planetária e brasileira. As sextilhas de seu cordel foram construídas sobre a dor, sobre o medo, sobre o horror. Mas não é apenas o pedido de perdão. É também a reflexão política mais imediata e certeira. O poeta não poupa os senhores da guerra:
Eu implantei ditaduras
Dizendo que era o bem
Inspirei a inquisição
A guerra insana também
Do luxo criei o lixo
Para pisar mais alguém.
Essa Carta ao Planeta é mais que uma carta, é mais que um pedido de perdão, é uma peça política, é a exposição das vísceras do sistema político e econômico mundial, sentado sobre o lucro a qualquer preço, sobre o desperdício alimentar em detrimento da fome, sobre as perseguições étnicas, sobre genocídios e o desespero dos mais pobres. Como disse, Honorato é um poeta pautado pela ação política, mas sem descuidar da poética:
Perdão por disseminar
Mentiras e falsidades
Eu descobri tudo o quanto
Gozando das liberdades
Mas encontrei no humano
Um pacote de maldades.
Uma das tradições do cordel brasileiro é ser testemunha da história. É uma prática que vem desde os pioneiros e o mais prolífico deles foi Leandro Gomes de Barros, conhecido como Pai do Cordel. Foi ele quem criou, além da forma poética, o sistema literário cordelístico. Tudo o que se pratica hoje nessa forma poética foi criado por ele, ampliado por ele e por ele pensado. Severino Honorato é um discípulo de Leandro. O próprio município onde nasceu deve ter visto o Pai do Cordel passando em direção a Guarabira para visitar seus parentes. O próprio Honorato encontrou, na feira da cidade, os folhetos de Leandro à venda na voz e na banca de algum folheteiro.
Falávamos da tradição de o poeta de cordel ser testemunha da história, narrar os fatos marcantes da sociedade, suas tragédias e comédias. Antes da Carta ao Planeta, Honorato escrevera Brumadinho: Descaso, Tragédia, Crimes. Como o título esclarece é uma obra de intensa reflexão sobre o fato acontecido em Minas Gerais, que chocou o país. A tragédia de Brumadinho é o mais terrível desastre ecológico brasileiro, com danos ambientais irreparáveis, perdas de vidas humanas e destruição da fauna, da flora e dos sistemas pluviais. Honorato consciente de seu papel de repórter e comentarista cordeliano nos inoculou de tensão:
Quem vai sentir minha dor?
Quem conserta meu penar?
Quem vai consolar meu choro
Com tal zelo até parar?
Quem transportará os mortos
Por entre caminhos tortos
Aos túmulos doutro lugar?
São questionamentos, na sextilha do cordel, cutucando firmes e certeiros, a consciência do mundo. Um poema tão forte, escrito para nos levantar do chão. Toda essa força contida no poema tem um histórico. A sensibilidade do poeta que sai de Mulungu, na Paraíba do Norte, e vem para o Rio de Janeiro construir sua dignidade, erguer seu marco de vida, maltratado no dia-a-dia da sobrevivência, recheado de saudade e, muitas vezes ou a maioria das vezes, de solidão. Marcado por essa trajetória, vivido e formado nas lutas sociais e nos atos de resistência, o poeta construiu sua ética e a encaminhou para a causa da preservação da Natureza, da Sustentabilidade, do Grito da Terra e dos Excluídos.
Talvez a última estrofe do poema sobre Brumadinho conclua um emblema para descrever o poeta em sua plenitude. Sua trajetória no universo cordelístico já está delineada e louvada e reconhecida. Sua contribuição para o sistema literário criado por Leandro Gomes de Barros é imensa. Vive em Honorato duas qualidades e virtudes: é humilde sem ser submisso, é excelência sem arrogância. O resumo está na estrofe final de Brumadinho: Descaso, Tragédia, Crimes, como sempre com sua assinatura que não vem em acróstico, mas estendida dentro do próprio texto, parte da própria estrofe, complemento da sextilha:
Este Honorato repele
Riqueza com ilusão
Promessa de vida justa
Sem devida comprovação
Sou contra o poder ingrato
Que assegura em seu ato
O ciclo da escravidão.
Quem vai de Campina Grande, a Vila Nova da Rainha, na Paraíba do Norte, para a capital João Pessoa, pela BR-230, a Transamazônica, passará pelo Cajá, um entreposto para descansar as pernas e comer a tapioca do Irmão Firmino. Um pouquinho antes verá uma placa que aponta para a direita: Itabaiana, Terra de Sivuca. Para a esquerda tem a placa que diz: Gurinhém. Gostaria muito de ver, a cada viagem que fizer, a placa que dirá, apontando para a esquerda: Mulungu, Terra de Severino Honorato.
Muito lindo como sempre as seus cordéis são emosionsntes