“Nunca esqueci de quem somos descentes” — Amar antes que amanheça, de Cristiane Sobral Revista Kuruma'tá, 11 de outubro de 202111 de outubro de 2021 Texto de Toinho Castro — É preciso ter curiosidade, é preciso querer mais e preencher lacunas. Nas livrarias, nos sebos, vá e procure por outros livros. Não por esse ou aquele outro do autor de sempre. A literatura é o reino das possibilidades. Por favor, leia abrindo portas, abrindo caminhos. Tenho nos últimos tempos me dedicado a isso, ao romper da rotina literária, do terreno familiar, para me embrenhar em matas de letras, riachos de palavras novas. Assim que dei com a literatura de Cristiane Sobral, que, vejam só, eu não conhecia. Uma autora com 11 livros publicados, num jogo de contos, poesia, teatro, ensaios. Uma mulher inquieta, pensante, com um texto desafiador. Uma mulher negra, que me aponta uma grandeza de tradições, ritos, narrativas e afetos, que eu preciso olhar. Preciso adentrar. Aprender a ler outrem. Aprender é ler outrem. Amar antes que amanheça (que título poderoso!) é o décimo primeiro livro de Cristiane Sobral. E aprender dela somente nesse livro, é uma denúncia da lacuna enorme que preciso preencher. Publicado pela bravíssima Editora Malê, o livro reúne 15 contos em que o amor é uma força motriz, e ao mesmo tempo uma leveza generosa. Um refúgio nesse mundo de tensões, atritos, violência. Amar antes que amanheça. Amar antes de tudo. Amar antes. Destaque para a bela capa com arte de Josafá Neves No conto que abre o livro (sem spoiler, por favor!), vamos sendo enredados numa história que se dá na rua, que vai desenhando um caminho e um desfecho, e que, de repente, se deslinda no real, num tapa de acorda! Quem és tu?! Demorei a entrar no segundo conto, porque aquele começo me chamava de volta. E voltei e li de novo, atento, sob uma perspectiva nova, didática, certeira. Que coisa bela ser tirado do lugar assim. Aí sim fui para o segundo conto, e para o terceiro, numa jornada que não cessa e pede mais, mais dessa literatura que nos exige tirar o véu. O amor em toda parte para quem o procura e o inventa. São páginas de mitologias, história, geografias, revelações e, sobretudo, desse novelo/novela que é ser gente. A leitura de Amar antes que amanheça é tão fluida e natural, que quando você dá por si, o livro já tomou conta do seu imaginário, do seu pertencimento. Os povos negros que povoam suas páginas vem de tantas origens, tantos caminhos, para dar aqui, nesse labirinto de encontros e desencontros, a sua história. Leio para aprender. Leio para não esquecer. Cristiane Sobral é uma contadora de histórias, e reúne ao seu redor as comunidades muitas, no tempo e no espaço, de que são feitas as vidas da gente. A história é essa pedra que cai na água e provoca essas ondas concêntricas, que vão se espalhando e impactando, transformando nossas vidas. É o papel de quem conta histórias. É sua força, iniciar esse ciclo de mãos dadas. A literatura afro-brasileira é porta e janela abertas. E convite. Temos muito o que ler nessa senda. A obra de Cristiane Sobral tá me chamando, e a esse chamado eu atendo. Em 2010, Cristiane Sobral publicou seu primeiro livro individual, Não vou mais lavar os pratos. Dele destaco o poema que dá nome ao livro, para compartilhar a energia poética de Cristiane e sua força afirmativa, de vida. NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS Não vou mais lavar os pratosNem vou limpar a poeira dos móveisSinto muitoComecei a lerAbri outro dia um livro e uma semana depois decidiNão levo mais o lixo para a lixeiraNem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintalSinto muitoDepois de ler percebi a estética dos pratosa estética dos traços, a ética, a estáticaOlho minhas mãos quando mudam a página dos livrosMãos bem mais macias que antesSinto que posso começar a ser a todo instanteSinto. Qualquer coisaNão vou mais lavar. Nem levarSeus tapetes para lavar a secoTenho os olhos rasos d’águaSinto muitoAgora que comecei a ler quero entenderO porquê, por quê?E o porquêExistem coisasEu li, e li, e liEu até sorriE deixei o feijão queimar…Olha que o feijão sempre demora a ficar prontoConsidere que os tempos agora são outros…Ah, esqueci de dizerNão vou maisResolvi ficar um tempo comigoResolvi ler sobre o que se passa conoscoVocê nem me espereVocê nem me chameNão vouDe tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendiVocê foi o que passouPassou do limite, passou da medida, passou do alfabetoDesalfabetizouNão vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeiraNem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cáDesinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveisNão tocarei no álcoolDepois de tantos anos alfabetizadaAprendi a lerDepois de tanto tempo juntosAprendi a separar Meu tênis do seu sapatoMinha gaveta das suas gravatasMeu perfume do seu cheiroMinha tela da sua molduraSendo assim, não lavo mais nadaE olho a sujeira no fundo do copo Sempre chega o momentoDe sacudir, de investir, de traduzirNão lavo mais pratosLi a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculoEm letras tamanho 18, espaço duploAboli Não lavo mais os pratosQuero travessas de prataCozinhas de luxoE jóias de ouroLegítimas Está decretada a lei áurea Mais livros da Editora Malê na Blooks Livraria A AfetoContoCrônicaEditora MalêJosafá NevesLeituraLiteraturaLivroMemória
O que é um escritor sensível e generoso descobrindo outro de força e ímpeto? Dá nisso… Um texto profundo que nos arrebata. Obrigada, Toinho. Obrigada Kurumatá. Vida longa às culturas e afetos!!! Responder
Que alegria que a gente pode fazer essas conexões, seguir nesses caminhos que se encontram!! Obrigado! Sigamos, tamo junto! Responder