A orquestra dos inocentes condenados | Livro de Milena Martins Moura

Resenha de Toinho Castro, citando poemas lindos do livro da Milena


caros amigos
venho informar
que hoje apareceram
júpiter e saturno
próximos no céu.


As mais de 600 mil morte, só no Brasil, até onde se sabe e até agora, são uma mancha de violência tão enorme na nossa história, que é difícil falar das coisas boas que, de um jeito ou de outro, vieram a nós durante essa pandemia. Mas é preciso que se fale delas também, não para justificar esse desastre como um espaço de aprendizado, até porque, o que se aprendeu a gente já deveria saber há muito tempo. Mas sem dúvida há coisas que nos ajudam a manter a cabeça fora d’água. Essa água tumultuosa, invasiva, reativa e escura. No meio disso, há pontos luminosos, e cada um de nós poderá citar seus pequenos faróis na guia para atravessar esses tempos.

Um desses faróis, sem dúvida, é a poesia. E muita poesia se fez nesses dias duros.

venha rápido pois tenho pressa
tenho uma pedra
então entenda
o mergulho nessa água escura
é um risco
que eu só vou aprender a viver
depois do salto
um risco é o que se corre
e eu tenho pressa
meus braços são tão fracos
e eu tenho pressa
mesu olohs tmê falhaod
e eu tenho me evitado
no reflexo do poço
eu tenho pressa
da palavra pesando meu corpo
de levantar os olhos e ver
e ver
cada silêncio é uma imagem a menos
então venha rápido
antes da próxima maré
que nessas águas repousa a coisa morta
que se perdeu de mim durante a última música

A Kuruma’tá, como uma casa de poesia, fica atenta a isso e acompanha essa claridade súbita que se faz quando a gente menos espera. E com isso que a gente se alegra, com esses livros corajosos que se insurgem contra a morte e contra a perda da sensibilidade. A orquestra dos inocentes condenados (Editora Primata, 2021), de Milena Martins Moura, é um desses lampejos.

Escrever como maneira de manter-se sã durante tempos atípicos e assustadores.

Totalmente escrito e publicado em meio à devastidão que espalhou pelo mundo, pelo Brasil, A orquestra do inocentes condenados é um livro de ordem íntima, que você lê e sente ele vindo de dentro. De dentro da poeta, e de dentro da gente. Memórias e aparentes miudezas. Coisas que, na verdade, crescem gigantes na alma. Universos suburbanos que parecem mínimos, mas são mínimos como um aleph, que a tudo comporta.

Ler o livro é descobrir-se e enfrentar-se, na tentativa, tantas vezes vã, de alcançar sentidos, razões, caminhos para essa coisa chamada vida. Ao mesmo tempo, suas páginas são traspassadas pela morte, pela brevidade de tantas coisas, de tanta gente, que de uma hora pra outra se torna inalcançável, ausente. O passado se torna inalcançável e só podemos revirá-lo com a poesia. Essa lente, às vezes meio difusa, que investiga essas frestas que se abrem e que vão sendo preenchidas pela latência do possível.

Ali está Milena, nas suas próprias páginas e palavras. poderia ser eu com essa dor e esse olhar. Poderia ser você com essa hipermetropia, esses cadarços por atar. A poeta é líquido revelador derramando sobre o papel fotográfico… e o que vemos na foto que surge é a sucessão das coisas perdidas, algumas reencontradas, tão deslocadas que parecem outras. E a cada luz e sombra, a cada nuance que vai se revelando, esperamos ver o que ainda não há. O futuro improvável, ilegível. Ler Milena é ver essas fotografias se revelando a cada virada de página do álbum. É escutar sua música insinuada a cada verso, cadente. Leia. Cante…

perdoe se me repito
mas acho importante reiterar
que o sol é só mais uma estrela
sobre a qual, esclareça-se
não pesam peculiaridades
uma média amarela
numa esquina esquecida
do rolé
perdoe-me também
se devo repetir
que ser humano
é resvalar no abjeto.
é suar, sujar e cuspir
limpar do corpo as secreções
que nos disseram impróprias
porque não foram retratadas
nos quadros de santos
porque deus não mancha
com nódoas de suor
a sua toga
nem se narram dele
as excrecências
mas assim se convencionou
falar dos bichos
tenta-se, como ato redentor,
escapar ao humano
que não é senão bicho
com suor
e saliva
e gozo
e choro
imagem
e semelhança
dos que preferem
sentir a terra
com os peitos

Ler poesia é sempre melhor que falar ou ler sobre poesia! Poesia para manter-se vivo. Mais ainda, para viver. Para caminhar entre os seus e entre os demais. Para abrir os braços no meio do corredor e se sustentar nas paredes porque talvez as pernas fraquejem. É o que sustenta. Esse versos, escritos por Milena, arrebatam a gente e também desafiam a remexer nessas gavetas mal fechadas da vida. Que dali se tira o que viver e o que esperançar. Apesar.

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Milena Martins Moura nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro em 1986. Passou a infância no bairro de Madureira e a adolescência no bairro da Pavuna, morando hoje no bairro do Cachambi. Seu Rio de Janeiro não está nas letras de Bossa Nova. Tem ônibus lotado, vendedor de bala no trem, sapato pendurado no fio elétrico, padeiro de bicicleta vendendo o pão de porta em porta e a recorrente menção à Telefunken 1984 sem controle remoto da infância.

Em 2011, lançou seu primeiro livro de contos, Promessa Vazia, que mistura literatura fantástica com relatos intimistas e psicológicos. Seu livro de poemas Os Oráculos dos meus Óculos foi lançado em 2014 num evento com participação da banda Tormentorum, da qual a poeta foi vocalista entre 2013 e 2016. Os Oráculos são sua carta de despedida para seu avô Daniel, falecido em 2010 após um longo e doloroso processo de morte que se tornou temática constante em sua obra.

Lançou também o plaquette de poesia Banquete dos Séculos, em 2021, de maneira independente como e-book. O Banquete é uma introdução a seu projeto independente de contos, a série Violenta, prevista para 2022.

Como escritora, foi publicada em inúmeros portais e revistas, como Cronópios, Subversa, Torquato, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Desvario, toró, Arara, Kuruma’tá, Aboio, Arribação, Totem Pagu, Granuja (México) e Kametsa (Peru). Seus poemas também estão em podcasts como o Toma Aí Um Poema. Além disso, integra as equipes de colunistas da revista Tamarina Literária e de poetas do portal Fazia Poesia.