Tays Melo na Kuruma’tá!

Mais gente boa chegando nas páginas da Kuruma’tá! Agora é a vez de Tays Melo. A poeta, nasceu em Natal-RN, mas cresceu e criou-se em Areia, na Paraíba. Prepara seu primeiro livro Não Queria Bonecas; Gostava de Flores, para 2022, fruto da Lei Aldir Blanc.

Crônicas e poema de Tays Melo

Foto de GLandovsky | Wikimedia

Esta cidade é como uma jovem mãe pobre, que promete aos filhos que tudo vai dar certo e que, amanhã, as coisas vão melhorar

I

Eu moro em uma cidade chuvosa. Agora mesmo ouço trovões e cai um forte temporal. A terra fica bem molhada. Trilhas de areia se formam em córregos rasos na estrada.

Aqui tudo parece lindo, tudo parece poético, tudo parece tão vivo, tudo parece tão sensível. Os trovões, a paisagem cinza de tanta água de chuva, os morros escondidos no horizonte turvo da umidade, as folhas rasgadas pelos pingos fortes, a água de lama, as pétalas que se soltam por causa dos ventos e os guenzos encharcados, procurando alpendres para se amparar. O calçamento liso, envelhecido, a fantasmagoria triste das praças vazias e os fios de energia, com filas de gotas que despencam com o pouso dos pardais.

Sim, há pássaros que pousam nos fios elétricos sob chuva. É uma ousadia. E esse trovejar? Ah este trovejar… Parece gritos do meu coração em fúria ou a ópera numa encenação sobre saudade.

Hoje estou tão triste que sinto como se eu também fosse chover. Sinto como se fosse pousar sob a chuva em fios desencapados e sinto medo. Aqui, algumas vezes por ano, mesmo as paisagens tristes, parecem belas e mesmo as belezas parecem tristes.

Esta cidade é como uma jovem mãe pobre, que promete aos filhos que tudo vai dar certo e que, amanhã, as coisas vão melhorar. Enquanto debruçado sobre as janelas, o morador da periferia observa as lágrimas do céu descer as ruas enladeiradas, confundindo-as com as suas. E os poetas se afogam nas próprias palavras que não lhe querem sair. Como são lindos os sons estalados das goteiras de encontro ao chão. Será que dói?

II

Um dia eu briguei com os poetas. Eu os xinguei, os chamei de tolos, mas não por mera arrogância ou simples ignorância, e sim por negação. Como criança, quando tropeça e chuta a pedra que lhe machucou os dedinhos do pé, evitando entender que esteve desatenta e que as pedras não são culpadas por atravessarmos o seu caminho e que não sentirão dor e remorso por serem estáticas até pés distraídos lhes alcançarem, eu, furiosa, resmunguei.

É que eu, desnorteadamente, por longo tempo, tropeçava em poesias que me evocavam dores, fraquezas, carências. E entendia que poesia era como pedra na qual se tropeça quando não se observa direito o próprio caminhar e que fui eu quem escolhi o caminho das pedras. E aí, pensei: Não quero os poetas, não quero seus poemas, tampouco sua poesia cheia de pássaros livres e arredios, cheia de curvas revelando segredos e emoções alardeadas. E pensei mais: A poesia dói, a poesia corta e faz sangrar, faz minar sensações de incômodo e nos coloca de frente com faces sombrias que muitas vezes gostaríamos de manter no silêncio.

E a poesia também é lâmina. Retalha-nos e expõe nossos pedaços em praça pública, no teatro e na televisão. Faz de nossas dores um espetáculo onde o público abraça nossa loucura ou apenas rir de nós.

A poesia é navalha afiada, que sangra os poetas e lhes extraem o amargo e lhes expõe as veias lacinantes. É por isso que a poesia dói. E ela sabe doer. É uma dor que salva, um sintoma que singra sobre o sangue jorrado, em vermelho licor, traçando jornadas num corpo que renasce em ferida aberta. A poesia nos rasga, nos fenda, nos rompe, nos aparta para depois nos pangear.

Hoje, em meu sangrar, sinto que transformo coágulos em águas claras. Havia tantas coisas para serem ditas e não encontrei maneira de dizer, enquanto não fiz as pazes com a fera morando em mim. Não há como fugir do que bate com força às portas do peito. Não há como sentar à mesa e se fartar de alimentos estranhos. A gente apenas belisca para não morrer de fome. A poesia só fere enquanto é retida, afinal quem gosta de se manter na prisão? Hoje, a poesia me acorda, alimenta-me, namora-me, acaricia-me, faz-me voar e antes de dormir, eu sonho com o choque de espadas nas suas batalhas travadas contra os assombros das fortes ventanias.

Entre as melhores companhias ainda não há como se satisfazer negando a companhia de si. E como ter a presença de si negando o que se é? Eu pensei que não podia ser poeta. Sempre achei que não entendia nada de poesia, até que acordei numa noite fria de inverno, ouvindo a dobradiça da porta de meu quarto ranger. Uma sombra ligeira que se escondia em cada recanto apertado da casa, sussurrava que não se tratava de compreensão. O cosmo contido precisava ser sentido. Ainda que não fizesse o menor sentido, poesia não exige explicação. Se há uma fera rasgando o peito é preciso sentir e expulsar ao mundo o que se sente, porque o que pulsa dentro da gente não sossega até que saia e abrace as flores enquanto se banha ao sol.

Então, um dia, eu cheguei procurando quem me achara de outros carnavais. Carnavais que perdi, carnavais que me deixaram menina do cárcere das saias que usei.

Cheguei à livraria e estava aberta, porém quase vazia. Havia estantes desarrumadas, livros novos envelhecidos. O moço do balcão não sabia onde estavam os poetas. Eu, que tantos os rejeitei, botei-me a procura como alguém na busca das chaves da casa própria, perdida no dia da mudança. Eu, numa livraria, procurando poesia? Olhei torto na vitrine e vi no reflexo as outras de mim, que não paravam de rir nem cansam de suas ironias. Achei Pessoa, achei Clarice, achei Meireles, na pressa daquela agonia, mas trouxe Drummond, a antologia…

Poética.

Mulher

Mulher,
Você é muito forte.
Você é muito inteligente.
Você é muito capaz.
Mas, mulher, você é mulher
Demais.

Você deveria aprender a dirigir
deveria fazer outra graduação
deveria fazer pós-graduação
deveria conhecer outro país
deveria aprender inglês
e ter aulas de violão.
.
E acumular menos louça na pia
Varrer essa casa todo dia
E dar mais atenção a sua cria.
Deveria arranjar um namorado
Investir no seu lazer
E começar uma terapia.

Deveria ir ao médico
Sair com seus amigos
Malhar numa academia
Acompanhar os lançamentos
Exercer sua cidadania
Mantendo as contas todas em dia.

Precisa aprender a teclar
Responder aos contatos
Do perfil na rede social
Você precisa fazer o jantar
precisa ir ao mercado
E ser mais pontual

Pra não esquecer a reunião de trabalho
Nem a reunião de pais
Não esquecer de aguar o jardim
Nem de trocar o botijão de gás

Leve a criança à escola
E não esqueça de ir buscar
O dia tem vinte e quatro horas.
Um organograma vai te ajudar.

A culpa é sua
De não gerir seu tempo
De eu apresentar solução
E você não querer aplicar.

A culpa é sua
De não ter nascido duas
De ter braços pequenos
E o mundo não saber abraçar.

A culpa é sua por viver reclamando
Que tá cansada
Que tá doente
Que tá com sono
Que tá lascada
Que quer chorar.

A culpa é sua por viver
Querendo se esconder
Querendo partir
E não querendo sentir
Esta falta de ar.

A culpa é sua por decidir
Viver sem se explicar
Com vontade de fugir
E não mais suportar.

E por isto
Não faz sucesso
Não faz amigos
Não faz arte
Não faz amor
Não faz nada.

Não tem tempo
Não tem coragem
Não tem leveza
Não tem estrutura
Pra ditadura
Da ampla jornada


17 comentários

  1. Lindas poesias! Impossível não se emocionar e não refletir sobre si mesmo ao ler esses versos tão cheios de sentimentos. Parabéns à escritora que traduz de forma tão bela o que se passa em seus pensamentos, sua alma e seu coração.

  2. Thays, eu amo poesias e essa que acabei de ler é linda, você é muito inteligente e talentosa . Parabéns e muito sucesso

  3. Poesias potentes que captam a singeleza que acalenta a vida. Isso tudo, sem se esquecer da aspereza que afeta a mulher no cotidiano.

    1. Muito obrigada, Alexandre, por sua leitura. A poesia é uma porta para a liberdade e a ferramente que destrói os grilhões de um mundo que nos amarra a obrigações cotidianas que nos faz trabalhar mais para morrer que para viver.
      Gratidão imensa por seu olhar empático sobre estas dores.

  4. Que leitura gostosa. Adorei a chuva e todos os detalhes e cenários que vieram junto. Da pra ouvir o canto dos pardais e caminhar nas ruas molhadas, enquanto se observa as paisagens q vc tão lindamente descreve.

    1. Muito obrigada por visualizar o roteiro de meus olhares sensíveis sobre os cenários invernosos, Sonia. É preciso ter coração amplo para absorver mundos alheios. Acredito que seu coração tem espaço infinito.

    1. Ah, nossa! Que bom, Bel! Que minha escrita fala e expressa também suas vivências. A gente precisa conversar com nossas dores e expô-las de modo lirico, leve e com respeito. Fico feliz que tenha se encontrado pelas minhas andanças. Muito obrigada porsua leitura e apreciação.

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