A caminhada como poesia de uma sensibilidade ficcionada para fazer cidade Revista Kuruma'tá, 6 de outubro de 202019 de outubro de 2020 Texto de Ricardo Seiça Salgado Membro do grupo informal auto-organizado Crítica de Fuga, para o Festival e Laboratório Internacional de Artes Performativas – Linha de Fuga | 12 Set. a 4 Out. 2020, em Coimbra. Foto: Augusto Fernandes Para um autóctone de Coimbra, pré-imaginar a cidade aberta é por si só um jogo. Città Aperta, de Alain Michard constrói-se numa pequena oficina de seis dias, pesquisando o “relacionamento sensorial e imaginário dos participantes com a cidade, (…) delineado e interpretado em comum por todos e composto por experiências que alternam entre performances, conferências, refeições coletivas, histórias e reconfigurações de espaços da cidade”, diz no programa. É um percurso concebido numa longa caminhada e participada, gerida por guias mestres-de-cerimónias que são, leem, fazem e elicitam a cidade, brincando em diferentes modos de relação com ela e com o público, jogando com o seu papel na performance e na cidade. Na performance somos parte do público e somos bailarinos e performers. Na cidade somos cidadãos, habitantes, turistas, estudantes, visitantes a vários prazos e interlocutores da história do lugar no aqui-agora, reinventado em comum. A caminhada e a cidade é feita de uma coreografia interrompida com gatilhos para uma experiência da demo e da performance enquanto ensaio. Como se habita a cidade e/ou a performance que se faz nela? Que relações compomos na negociação das ficções persuasivas dos nossos habitats de significado e o etos da cidade? A caminhada e os acontecimentos-interrupção ensaiados convocam diferentes procedimentos de relação com ambos os planos, performance e cidade. E dão pistas nos seus jogos-momento para abrir a imaginação da cidade comum por vir. Foto 02 Foto: Augusto Fernandes A função dos guias é explicar o jogo em cada acontecimento-interrupção ensaiado, entramos com eles no procedimento e no nosso papel, o princípio de relação para com a performance e para com a cidade. Começamos a fazer uma coreografia, dançando onde passei grande parte da adolescência, círculos e linhas, a diferentes velocidades de tempo e de espaço (viewpoints, diria), várias pessoas caminham sob olhar de transeuntes, um happening dentro da performance, dança na Praça da República em tempos de pandemia. Saio daqui com uns óculos que impedem a visão, apenas permitem ver um muito vago sombreado fusco, guiado por um participante do público, em silêncio e separados por um pau de 2 metros pelo passeio, em direção ao Jardim da Associação. Ensaio sobre a cegueira. A audição amplifica-se, a atenção para o caminhar reaviva-se, novamente dança. Mas reparamos, penso fazendo. Foto: Augusto Fernandes Que abertura, a desta cidade? Afinal de contas, a cidade e a sua abertura fazem-se. A cidade aberta que se evoca também é performance aberta. Caminhar-fazer. Se a cidade for aberta é cuidar dela, se não for, como abri-la? Tem a cidade abertura na sua ficção persuasiva? E se sim, como? Com que performances? Para alguém que é de cá, que vai e volta, é inevitável reparar na sua pouca capacidade de fixação de pessoas desde há muito tempo, algo que lhe acentua um etos de não inclusão. Perante a minha cidade ou aquela que sintetizo enquanto ficção sociológica persuasiva, como fazer a performance da cidade por vir? Como se constrói uma atitude ativa para a cidade? O percurso faz isso com a cidade física e através da vida social e histórica dos edifícios, das ruas, da sua paisagem e o seu dinamismo social em todos os planos do habitar dialogicamente a rua por vir porque, em conjunto, experimentamos. Foto: Augusto Fernandes “Isto é um espaço de uma história famosa. E isto é uma história de famílias da cidade. Eram inimigas. O problema é que eram inimigas mas tinham filhos que não eram inimigos. Alguns miúdos lutam, mas o rapaz e a rapariga não o faziam. O nome dela é Julieta. Vive na varanda do segundo andar. E a porta, no final das escadas, está fechada. Fecharam definitivamente aquela porta. ‘Nós não queremos que o belo Romeu entre neste castelo’. Romeu conseguiu entrar pela porta fechada, mas como era um pouco idiota, nada sabia sobre poesia, viu-se confrontado em abordar aquela donzela. Tentou uma vez mas cedo percebeu que tinha de pedir ajuda. Pediu a um amigo com um nariz comprido que escreve um poema a Julieta. Na fala de Romeu que o diz, Julieta pede um beijo. Mas logo sentiu (o engodo)… Ainda hoje Julieta espera na varanda da enfermeira, da ama. Portanto têm aqui uma varanda em que podem enviar mensagens, poesia para a tua amada. Imaginem vinte aqui, talvez amantes…” (tradução livre da fala em performance de Alian Michard, parêntesis meus), conta o Alain na fachada do antigo hospital velho, agora parte da universidade. A poesia da arquitetura e do teatro, da história e do dramático contaminam-se por via do afeto, ressoando a história. Ao fundo da fachada, uma janela aberta. Foto: Ricardo Seiça Salgado Foto: Augusto Fernandes Guiam-nos pela história da universidade e inventam cruzamentos para a vida social dos edifícios contaminada pela ficção: como a evocação subjetivada da história das escadas monumentais ou do primeiro dia da crise académica de 1969, nas Matemáticas, ou os três écrans de um artista “Miguel Machado” (fictício?), que estão entre as Químicas e as Físicas servem de interpretação da obra, ou a paisagem de quem entra no Botânico por cima, sobre o rio, naquela escala imensa que abrange as pontes ao fundo, é expressa como a obra de Isabel Ortice, no âmbito da Bienal Ano Zero de Coimbra! Realidade ou ficção? Uma ficção persuasiva para a cidade como um todo? Que todo pela parte? Como cruzar as partes da cidade física, da cidade-cabide, da cidade traje, ou da cidade de práticas? Que cidade habitat? Foto: Augusto Fernandes Foto: Augusto Fernandes No percurso aparecem autênticos postais, uma instalação viva que se repete de um casal bonito simplesmente ali sentado, comendo snacks, conversando, e que vamos encontrando em todo o percurso. A cidade pequena dos fáceis reencontros. Real, ficção? Os casos reais são entrelaçados com a imaginação suscitada pela simples elicitação de um encontro, de um engajamento na performance da e na cidade. Na zona comercial da baixa, vejo a bela adormecida dormindo numa montra. Cuidado! Você está a ser filmado! Quererá um beijo, ou será um espelho? Foto: Augusto Fernandes Foto: Augusto Fernandes No Botânico fui planta e contam-me a minha história, a de cada um dos participantes, depois de uma experiência-sensação que ativou o chacra do centro de comando (Ajña) no bambuzal para, no fim, ser alimento numa comunidade de práticas. No percurso somos interrompidos por fragmentos-performance dos projetos que os artistas residentes no Linha de Fuga experimentam e que colaboram. Um belo gaspacho feito em conjunto começou a resolver a minha relação com o pepino (que não suporto) e a cidade. Fazendo vamos, entre a realidade e a ficção persuasiva, na possibilidade de um comum, no pensamento e na ação, para uma sensibilidade de fazer cidade. Afinal, o futuro é sempre uma ficção. Foto: Augusto Fernandes Foto: Augusto Fernandes Este texto integra a coletânea produzida pelo grupo Crítica de Fuga, que acompanha os trabalhos dos artistas e as atividades do Festival Internacional de Artes Performativas – Linha de Fuga. A ArteCoimbraCríticaCrítica de FugaFestival Linha de FugaPonte TransatlânticaRicardo Seiça Salgado