Crônica dos últimos momentos

Texto de Toinho Castro


O grande desafio da vida é descobrir quem segurar pela mão quando o fim do mundo bater à porta e alguém gritar pra a gente correr. Porque no fim das contas a única coisa que importa é quem a gente segura pela mão. Vanderson olhava suas próprias mãos no banheiro da lanchonete, enquanto as lavava da gordura do hambúrguer e pensava no quanto estava despreparado para o fim do mundo. Se o mundo acabasse amanhã, a quem ele daria a mão? Quem fugiria com ele? Quem o faria correr sem rumo e inutilmente pela cidade, mas de mãos dadas, irreversivelmente de mãos dadas, quando as cinzas e a lava de todos os vulcões os cristalizasse uma escultura que seria descoberta mil anos depois, pelos povos vindouros, visitantes de um planeta curioso a perscrutar nossa história soterrada?

Terminou de lavar as mãos e deixou a lanchonete. Sentia ainda o frescor da água gelada que sempre aparecia nas torneiras naquela época do ano. Caminhou solitário pela rua com o sabor da maionese vagabunda na boca. Deveria ter escovados os dentes… Na verdade nem deveria ter comido o hambúrguer. Maldito livre arbítrio, controlado pelas corporações, pela publicidade, pelo último modelo de celular e pela lanchonete multinacional da esquina. Mesmo a ideia de escovar os dentes não era dele, mas da pasta de dentes. Logo mais iria remover o sabor da maionese com um chope gelado em outra esquina, sob os auspícios de outras tantas marcas. E ali, no encontro com os amigos para o tal chope, olhou em volta e se viu, desolado, outra vez de mãos vazias. Ali cada um correria para um lado diferente na hora em que o chão tremesse.

Pois então que o chão não trema já. Que não seja agora, pensou ele.

Mas isso, ele logo descobriria, não era uma decisão dele e sim dos telejornais. O chope encerrou na melancolia de sempre, todo mundo meio insatisfeito. Todo mundo tendo bebido um pouco além da conta e voltando para casa de ônibus ou metrô. A pressa em catar trocados para o cobrador não olhar com cara feia para você, oferecer moedas para facilitar o troco e ele não aceitar e te devolver mais moedas ainda. Em algum ponto, pensava Vanderson, dobramos na esquina errada e o testemunho desse erro estava em toda parte. Era algo que sobressaía acima das coisas quase sempre naquele horário, pós-trabalho, pós-chope-pós-trabalho… um ruído contínuo, insistente, que denunciava o lixo em que havíamos nos metidos.

Antigamente as pessoas ficavam nos coletivos olhando para o nada, para dentro. Mas era um dentro poço-sem-fundo… Um dentro hipnótico feito de vazio, de um esgotamento de fim de dia.

Agora são os celulares. Todos mergulhados nos celulares… joguinhos, redes sociais, mensagens de textos, o zap e as últimas fake news. O ônibus balança e socoleja algo dentro da gente, algo que se fizesse barulho o barulho seria ouvido em toda parte.

Vanderson foi pra casa. Apartamento de um quarto, no bairro da Glória. Cozinha pequena, banheiro pequeno, janelas pequenas, uma delas voltada para coisa alguma e a outra para o corredor do andar. Vista zero, vento fresco zero. Insone, cerveja no freezer para que algo pudesse fazer sentido enquanto acessava a internet e se descobria sem e-mails. Não que não tivesse amigos ou compromissos ou correspondências. A prova disso é o chope de fim de expediente e uma agenda de telefone com gente em quase todas as letras. Sem falar do vizinho gente boa que sempre o cumprimentava no elevador, ou o porteiro com quem se atualizava sobre o futebol e as reuniões de condomínio que ele faltava pontualmente.

Dominando a sala havia um poster monumental de 2001 – Uma odisseia no espaço, único filme que Vanderson afirmava gostar. Dizia, na verdade, que era o único filme havia assistido, ainda que não faltassem testemunhas oculares das suas diversas e levianas sessões de cinema. Ele chamava o poster de O Monolito e muitas vezes ajoelhara-se diante dele pensando sobre a vida, sobre o seu primata interior, tantas vezes tão à flor da pele. Costumava dizer que não é fácil aturar o mundo lá fora quando se tinha um poster como aquele na sala. Para os amigos de bar contava a história que, certa noite, fora dormir e ao acordar deu com o poster pendurado na parede. Para ele uma óbvia intervenção de forças além da compreensão.

E foi ali, diante do poster, na manhã seguinte, que ele soube que o mundo estava prestes a acabar. Uma coincidência idiota… passou a noite anterior com isso na cabeça e de repente o mundo resolve acabar, ou resolvem acabar com o mundo. Assim de uma hora para outra teria que tomar certas atitudes, ligar para alguns amigos, arrumar as malas. Pensou que se o mundo ia acabar deixaria as malas arrumadas; também havia decido, há tempos, que não correria.

Tentou fazer umas ligações mas o serviço telefônico, que mesmo nos melhores dias não prestava, começou a dar sinal de suas falhas finais. Ligou a TV num último gesto do desespero por constante atualização e tudo ficou esclarecido. Sentado, calmo, assistiu as imagens, ao vivo, das ondas gigantescas que varriam os oceanos. Ainda que não estivessem claras as razões para o cataclismo, um esbaforido apresentador do telejornal apontavam os dados precisos, como altura, velocidade e destino de cada uma daquelas ondas. Cidade tal, cidade essa e aquela. Rio de Janeiro! Lá estava a onda dedicada ao Rio de Janeiro… enorme, com uma força descomunal, crescendo em tamanho e vigor a cada quilômetro percorrido. Algumas cidades já haviam sido destruídas e não faltava muito para que o bairro da Gloria sucumbisse sob a violência das águas. O próprio sinal da TV tinha ido para o ralo, junto com as regras que definem o que chamamos de civilização.

Deixou as malas no apartamento, mera convenção íntima. Suas roupas não seriam espalhadas por aí mas navegariam até que baixassem as águas, para serem descobertas em mil anos, sempre mil anos. Relíquias. Fechou janelas e desligou o gás. Seu apartamento não estaria entre os que explodem.

Muito bem, pensou Vanderson, o que eu faria se o mundo fosse acabar? Dar a mão a alguém e esperar a grande onda que sempre esteve a caminho. Esperá-la de mãos dadas e caminhando como quem vai, não salvar o mundo, mas descansar com ele. E nesse pensamento ele estava quando de repente ouviu alguém chamar seu nome. Em meio ao corre-corre que o cercava, em meio à confusão que rodeava sua ternura interior, seu nome vibrou no ar. Era nítido, límpido, imperioso. Olhou ao redor atravessando tudo com o olhar e sentiu um chamado. E correu. Contra seus planos, ele correu. Contra seus desejos e anseios de ser o primeiro a ser carregado por aquela onda ele correu. Correu muito numa direção precisa como a onda. Ele era a onda, e se arremessou contra a multidão, contra os automóveis descontrolados e ônibus lotados no engarrafamento sem rumo.

Sentiu-se devastador, mais poderoso a cada passo que corria. Era como se ele fosse destruir o mundo. O chão vibrava sob seus pés e sentiu um vento forte com cheiro de maresia, o mesmo cheiro dos seus dias de infância, que varreu tudo ao seu redor e se adiantou a ele, indo além. A grande onda havia chegado à cidade e a engolia sem dó. Há quanto tempo corria, em que direções? Em quantos círculos ele se afundava mais e mais enquanto o mar se erguia?

Só sabia que corria pelas ruas da cidade enquanto a onda rugia nos calcanhares da civilização, gigantesca, inevitável. Corria ignorando o pânico, a inutilidade das máquinas e as mortes ao redor. Emaranhou-se pela cidade, percorrendo caminhos que somente a água devastadora percorreria, porque eram caminhos há muito perdidos.

Alcançou, finalmente, o seu propósito, o centro horizontal e vertical da sua busca. Recostou-se ofegante na parede do velho beco, o velho beco perdido na cidade e na memória. Sentindo a pressão do volume da água que a tudo carregava, olhou para o lado e viu alguém, ofegante como ele, cansado de correr e que também acabara de entrar no beco. Tinha tido a mesma ideia, ouvido a mesma voz que ele, e ninguém jamais saberia a o que os levou até ali. Entreolharam-se rapidamente e teriam dado as mãos, se já não fosse tarde demais.