Eu sei que é junho

Texto de Toinho Castro


Quadrilha da Avenida Um, no bairro do Alecrim, em Natal – RN (1953)

Vivo para ver junho chegar. Bem sei que é uma afirmação dramática, exagerada mesmo. Vivo, afinal, para muitas coisas e pessoas. Mas a chegada de junho é algo que anseio desde as primeiras horas de janeiro, ainda sob a alegria de qualquer espumante que se estoure. O barulho da rolha, pipocando na passagem do ano, talvez seja o primeiro estampido que dispara meu coração rumo ao ruído dos fogos e à fumaça das fogueiras que repousam na minha infância. Daí pra frente é uma contagem regressiva cotidiana. Nada tenho contra maio, mas quando ele termina uma alegria danada me invade.

Há pouco mais de vinte anos vivo no Rio de Janeiro. Quando aqui cheguei perdi no radar o sinal do São João. Junho chegava e eu andava pelas ruas sem encontrá-lo. Certamente por morar onde morava, na zona sul da cidade. Não via suspeitas de festa, nada de bandeirinhas coloridas ou gente reunida nas calçadas. Talvez nos subúrbios que eu ainda não conhecia, que não havia ainda alcançado por ser tão cedo, houvesse o tempo diferente das fogueiras acesas. Lembro de passar certa vez na frente de uma Lojas Americanas, em Ipanema, e ver uma barraquinha enfeitada de bandeirinhas e bolos e alguns produtos “típicos” da época. Pensei: Meu Deus, é junho…. É São João. Que vazio me deu.

Hoje é diferente, as festas juninas invadiram a cidade. Invadiram até julho e agosto, para caber na agenda apertada do ano. Naturalmente é tudo muito diferente da rua Pampulha, nos anos 70, muito diferente de Caruaru ou Bezerros, que não cheguei a curtir. Diferente do Nordeste. E é claro que tem que ser assim. Mudou o mundo, eu mudei. Tudo mudou. Mas andar pela cidade e ver bandeirinhas e a movimentação da criançada indo para a festa da escola já me anima. Mas ainda preciso voltar à terrinha para viver de novo o São João, e ver que mesmo lá tudo também mudou.

Alberto Guignard – Noite de São João, de 1961, óleo sobre madeira, 50 x 46 cm

Para mim o Ciclo Junino sempre foi a festa triste. Se havia a alegria das brincadeiras de ruas, do milho assado, havia também a temperatura que caía e a bruma da fumaça das fogueiras que a tudo cobria. Havia certa melancolia nos gestos, talvez porque fosse ancestral colocar o milho nas brasas da fogueira para assar. Talvez pelo colorido faiscante das estrelinhas. Ou porque escutávamos Luiz Gonzaga cantar a saudade das noites de São João, das noites brasileiras sob o luar do sertão. E era assim que o sertão se cristalizava na cabeça de uma criança, em plena Recife, urbana e litorânea. Dava pra imaginar o terreiro de terra batida estendendo-se até findar o halo da iluminação, o cheiro da canjica cozinhando nas panejas, o ruído seco dos passos dos pares a dançar. Uma série de signos que conectavam gerações de nordestinos.

A foto que ilustra o começo dessa crônica mostra a Quadrilha da Avenida Um, no bairro da Alecrim, em Natal, no Rio Grande do Norte. Era o ano de 1953 e no canto direito vocês podem ver a minha mãe, ajeitando o chapéu de palha do matuto. Os enfeites pendurados, as roupas, os noivos, o chão de terra. Tudo isso constrói um caminho até a mim, até aqui, nesta tarde de São João no Rio de Janeiro, onde me sinto que nem um exilado, enquanto os fogos brilham na noite da pátria distante, mas também tão perto, tão dentro.

Olha pro céu, meu amor / Vê como ele está lindo…


Há todo um imaginário das festas de junho baseado na lembranças da meninice. Quem o cantou parece que cantou de longe, sempre de longe. Gente que desceu para o Sudeste e carregou as visões que agora só cabiam em canções e crônicas. Veja só que coisa, no mesmo ano de 1953, no quando minha mãe ainda brincava vividamente no Alecrim a Quadrilha marcada em francês por Israel Botelho, o Tenente Israel, o pernambucano Antônio Maria publicava no Rio de Janeiro o texto Véspera de São João, um lamento de saudade de uma festa já inalcançável. Os rituais da família, as adivinhações, tudo desenhado em detalhes doloridos pelo cronista debruçado sobre a máquina de escrever, que lhe serve de elo com o passado, para muito além de sua janela aberta sobre Copacabana.

Trecho da crônica Véspera de São João, de Antônio Maria. Do livro Crônicas, publicado pela editora Paz e terra, em 1996.

Acaba que me criei, por conta da música e da literatura, dos quadros de Guignard, nessa espécie nostalgia, que flutua melancólica até a alegria mais pura. Deixo me carregar por ela mas sem esquecer que ainda há graça sim. Sem esquecer que é possível alimentar as brasas interiores e fazer migrar para o presente os gritos das quadrilhas. Morando hoje em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, marco o compasso da minha própria tradição subindo a escadaria da Igreja de Santo Antônio. Acompanho a missa, aproveito os quitutes das barraquinhas e lá do alto vejo a cidade e cada janela acesa me parece um balão a ganhar o céu. Um balão que voa até Pernambuco, por cima do recife, de onde, ainda menino, o vejo. E ele ruma para dentro, para o sertão, levado pelo vento que vem do mar, até desaparecer.

E reaparecer, quando o espumante pipocar nos primeiros segundos do ano que vem, e me vier à mente e ao coração vibrante o barulho dos estalinhos, o fole roncando e os pares de mãos dadas. Em algum lugar existe ainda a fogueira de paus verdes que meu pai armou na rua e que nunca queimou.

Igreja de Santo Antônio de Lisboa, em Vila Isabel, Rio de Janeiro

Recentemente o querido amigo e livreiro Francisco Olivar me presenteou com um livreto comovente, uma edição de São João do Nordeste, do poeta recifense Mauro Mota. Trata-se da publicação de uma palestra que o poeta proferiu em 16 de junho de 1952, sobre as festas juninas, na sede do Rotary Clube do Recife. Isso já era, ali nos anos 50, uma espécie de saudade, a história do São João precisando ser contada nos salões da grande cidade. O poeta é didático e afetuoso. Começa brigado com o São João, por conta do barulho dos fogos, das bombas transvalianas estourando pela cidade e acabando com o sossego possível. A partir daí, desse mal jeito, enveredamos pela tradição também possível. A história enraizada da festa, a cultura religiosa do milho, o casamento, os desafios de cantadores… passando pelas comidas e jogos de adivinhação, magia e mistérios das noite de junho.

Em frente à fogueira
Zuza espaduado,
benzeu-se sereno
e fa oração:
— chô — cão!
— chô — cão!

Depois levantou
a vista pro céu
pra ver se o espiava
senhor São João.

E meteu os pés nusinhos nas brasas de fogo quente.
— Danou-se, só quemtem os pés de sola!
Porém Zuza, vadiando, andou prá lá e prá cá!
Caxeteando se agachou pondo fogo no cachimbo!
Depois, puxando a poistola, atirou fixe no chão!
Vaiva senhor São João!
Vivôôô!

Ascenço Ferreira — Cana Caiana — Recife, 1939

Percorremos nas 36 páginas do livro um território encantado, protegido por uma redoma que o poeta tece, a fim de que todos possamos olhá-lo com atenção e gaudá-lo na memória, não mais como participantes. Pelo vidro da redoma vemos o brilho do estourar das bombas sem que nos chegue seu com. Rais de uma trovoada tão distante que não podemos escutá-la.

E então descobrimos que a fogueira se apagou há muito tempo. E que, no lugar dela, só existem cinzas. As cinzas da lenha e as cinzas do nosso encantamento.

Ao fim, Mauro Mota encerra sua fala revolvendo as próprias cinzas, evocando, não poderia ser diferente, o poeta Manuel Bandeira, que no seu livro Libertinagem, de 19933, escreveu sobre certa noite de São João. Sempre que eu passava, mais novo, em frente à casa em que Manuel Bandeira viveu parte de sua infância, na rua da União, no Recife, eu pensava nesse poema.

Profundamente
Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Do livro Libertinagem, de 1930.


O título desse texto foi tirado de um verso do poema Junho, de Geraldo Valença, musicado pelo seu sobrinho, Alceu Valença, no disco 7 desejos.