“Não siga mansamente para essa noite em paz” Revista Kuruma'tá, 29 de junho de 201930 de dezembro de 2019 Texto de Toinho Castro Pô, fui no supermercado, peguei um carrinho daqueles com a roda bamba e cumpri o ritual sagrado de comprar o lixo que me mata pouco a pouco a cada dia. Só a mim não. Nem se iluda, você tá morrendo disso também. E também de outras coisas que matam quem compactuou com as comidas super processadas, os automóveis e o combustível fóssil. Aí fui lá no supermercado enorme, com suas avenidas onde não existem leis de trânsito, todo mundo no exercício contínuo do cada um por si. Longas lâmpadas fluorescentes despejando sua luz branca imaculada nas formiguinhas zanzando de corredor em corredor, ansiando por promoções. Que lugar horroroso. A sorte é que as corporações canalizaram música por streaming nos celulares e eu podia entrar naquele círculo do inferno ouvindo Lou Reed, Perfect day. Aí tô lá, ouvindo Lou Reed e fui atingido por esse raio: Lou Reed morreu! Não, não foi hoje nem ontem. Faz um tempo já, uns anos eu acho. Mas é sempre como se alguém acabasse e gritar Fuja para as montanhas! Porra, Lou era casado com Laurie Anderson. Mas Laurie não morreu. Eu achava os dois um casal improvável, mas quem sou eu para achar o que quer que seja sobre isso, não é mesmo? Andy Warhol também morreu, antes de Lou. Lou e John Cale fizeram um disco lindo para Andy. Chama-se Songs for Drella. Drella era um apelido de Andy. John Cale tá vivo, cabeça branca. Ele tá lindo… Nasceu no País de Gales, no mesmo março de 1942 que o nova iorquino Lou, com uma semana e um oceano de distância entre os dois. Outro dia vi uma entrevista com ele, sem legenda, lutando para decifrar algum inglês por dentro daquele sotaque. Há muitos anos vi um documentário sobre ele. Chamava-se Words for the Dying e era sobre a gravação de The Falklands suite, em que ele musicou os poemas de seu conterrâneo Dylan Thomas. Vi numa sessão obscura no CCBB; uns 80 minutos com a gente acompanhandoa gravação daquele disco que viria a ser lindo… um estúdio em Moscou, Brian Eno capitaneando a produção. Depois Braian e John fariam ainda um disco juntos, Wrong way up, que eu comprei bem baratinho numa distribuidora de discos enorme, que ficava na rua Imperial, no Recife. Depois disso o tempo passou e esse filme ficou na minha cabeça para sempre, como um fantasma. Eu não lembrava mais do nome, só recentemente lembrei que a internet poderia me ajudar nisso e o redescobri. Ainda assim os sinais dele na web são mínimos, o suficiente para eu saber que não foi um sonho. Ou que seja um sonho. E é como num outro sonho dentro do sonho que lembro que Braulio Tavares, o Trupizupe de Campina Grande, ousou sua própria tradução para Do not go gentle into that good night, que Dylan Thomas publicou em 1952, dez anos depois do nascimento de John Cale. Não siga mansamente para essa noite em paz. Os velhos deviam arder e festejar, no fim do seu tempo.Esbraveje, esbraveje contra a luz que se vai. Embora homens sábios descubram o bem que a treva traz,suas palavras não raiaram relâmpago algum, e elesnão seguem mansamente para essa noite em paz. Homens bons lamentam, nos seus impulsos finais,que seus feitos não brilhem sobre as ondas verdes;esbraveje, esbraveje contra a luz que se vai. Homens rebeldes, que arrebataram o sol em cantos fataismas só viram depois o quanto o fizeram sofrer,não seguem mansamente para essa noite em paz. Homens graves, à morte, vendo as luzes finais,com olhos cegos alegres pelos meteoros que arderam,esbravejam, esbravejam contra a luz que se vai. E você, meu pai, que já se eleva para os seus umbrais,que suas lágrimas me sirvam como maldição e bênção.Não siga mansamente para essa noite em paz. Esbraveje, esbraveje contra a luz que se vai. (Tradução de Braulio Tavares) Songs for Drella é um disco triste, sobre uma perda irreparável. Homens que se perderam antes mesmo que um deles morresse. Os caminhos todos interrompidos. Ao longo da gravação e apresentação do disco Lou e John brigaram, não encontraram, e nem poderiam mais encontrar, um equilíbrio qualquer. Mas ainda assim nos assombra o violino de Cale sob a voz de Reed. I really miss you, I really miss your mindI haven’t heard ideas like that for such a long, long timeI loved to watch you draw and watch you paintBut when I saw you last, I turned away…(Lou cantando para Andy em Songs for Drella) E eu pensava no que eu teria ido comprar ali, naquele supermercado. Lista de compras improvisada na cabeça por nunca fui bom em listas de compras. Vinho, comprar vinho para brindar a Lou e Andy e John. Eu lá no meu quarto, num ano distante, colocando New York, recém lançado, para tocar. A voz de Lou anunciando os anos 90… The past keeps knock knock knocking on my door / And I don’t want to hear it anymore. E ao mesmo tempo eu ouvia Laurie Anderson no Home of the brave. Como eu amava Laurie Anderson, com toda sua modernidade, tantas referências; parecia que eu tinha que ler um monte de livros para receber e entender aquilo. Tão diferente de Lou que era tão visceral e marginal e perdido e todas essas coisas que a gente amava porque não convivia com ele. Gente, como os dois acabaram juntos, né?! Eu nunca imaginaria! Mas é isso, estavam ali o tempo todo na mesma letra da ordem alfabética dos meus discos. Ambos, cada um a sua maneira, colocando à prova o sonho triste americano. Você tem que se ligar que tudo isso me vinha à mente enquanto eu circulava meio a esmo pelos corredores do supermercado. Você sabia que Jean-Michel Jarre, ele mesmo, dos sintetizadores, fez um disco chamado Musique pour Supermarché? Foi prensada apenas uma cópia em vinil e diz-se que as masters foram destruídas. Lembro de quando via aqueles filmes americanos e tinhas aqueles supermercados enormes, brancos de luz, que só vim ver pessoalmente anos depois. Templos de consumo, pra voc~e ver que tudo, tudo é religião. E religião impõe a garrafa de vinho mágico já a bordo do carrinho; talvez eu precisasse de algum queijo para o ritual de invocar os deuses que persigo. Enveredando pelas áreas refrigeradas, cheias de iogurtes, presuntos e outras coisas que estragam sem a ajuda das máquinas, acabei por esbarrar nas carnes… E lembrei de Walt Whitman. Mas o Whitman de Allen Ginsberg, talvez por que Lou e Allen se conectavam na minha cabeça de alguma maneira. Lembrei inevitavelmente dos versos de Um supermercado na Califórnia, publicado em 1956 no livro Uivo e outros poemas. Este era um dos outros poemas. Um supermercado na Califórnia Como estive pensando em você esta noite, Walt Whitman, enquanto caminhava pelas ruas sob as árvores, com dor de cabeça, autoconsciente, olhando a lua cheia. No meu cansaço faminto, fazendo o Shopping das imagens, entrei no supermercado das frutas de néon sonhando com tuas enumerações! Que pêssegos e que penumbras! Famílias inteiras fazendo suas compras a noite! Corredores cheios de maridos! Esposas entre os abacates, bebês nos tomates! – e você, Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias? Eu o vi Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas carnes do refrigerador e lançando olhares para os garotos da mercearia. Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles; Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo? Caminhei entre as brilhantes pilhas de latarias, seguindo-o e sendo seguido na minha imaginação pelo detetive da loja. Perambulamos juntos pelos amplos corredores com nosso passo solitário, provando alcachofras, pegando cada um dos petiscos gelados e nunca passando pelo caixa. Aonde vamos, Walt Whitman? As portas fecharão em uma hora. Para quais caminhos aponta tua barba esta noite? (Toco teu livro e sonho com nossa odisséia no supermercado e sinto-me absurdo) Caminharemos a noite toda por solitárias ruas? As árvores somam sombras às sombras, luzes apagam-se nas casas, ficaremos ambos sós. Vaguearemos sonhando com a América perdida do amor, passando pelos automóveis azuis nas vias expressas, voltando para nosso silencioso chalé? Ah, pai querido, barba grisalha, velho e solitário professor de coragem, qual América era a sua quando Caronte parou de impelir sua balsa e Você na margem nevoenta, olhando a barca desaparecer nas negras águas do Letes? https://www.youtube.com/watch?v=zcTI7em_w2E Allen Ginsber lê Um supermercado na Califórnia, no Centro de Poesia da Universidade Estadual de São Francisco – 25 de outubro de 1956 As águas do Letes. Lembro exatamente de ler isso sentado na areia da praia de Ipanema, lembrando de um amigo que eu não via há muito tempo. Lembrei dele ali no supermercado, por causa de Whitman, que lemos tanto, por causa de Lou ou Allen. Escutamos juntos Strange Angels, de Laurie, quando foi lançado, no mesmo ano que New York. O encanto de uma pequena música, The dream before, que relia para nós o Anjo de Walter Benjamin que leu o anjo de Paul Klee, que fazíamos de conta compreender. As águas do Letes, que Lou e Andy já haviam atravessado. O super movimentado Letes. Imagino um ocupado Caronte em viagens e mais viagens sobrepostas em camadas fora do tempo, para dar conta de toda essa gente, recebendo seus trocados como os caixas do supermercado onde eu vagava, como se tivesse roubado meu próprio barco para cruzar o Letes e tivesse me perdido, à deriva na correnteza. Em Farway, so close, de Win Wenders, Lou encontra o anjo Cassiel na pior e lhe dá algum dinheiro para se virar. Quantas vezes estamos por aí dando dinheiro a Caronte sem nem saber? Angelus Novus, de Paul Klee (1920) – Atualmente faz parte da coleção do Museu de Israel, em Jerusalém. Tudo no supermercado estava morto e embalado, tudo nos carrinhos empurrados por fantasmas. Só eu estava lúcido, talvez, salvo do transe pela música que fluía pelos fones de ouvido, salvo por um Whitman imaginário em busca de alimento para a alma vagante. Recentemente eu havia comprado a edição de leito de morte de seu Folhas de Relva e uma edição de bolso de Uivo e outros poemas. Lou morreu e Allen morreu e seu Uivo inteiro é uma litânia sobre a morte e contra a morte. John Cale está vivo em algum lugar, planejando um disco ou um show, sem pensar sobre Lou, me apego a isso, à vida que há no que John faz. Me apego a Laurie, Laurie Anderson, que mesmo quando fala da morte é somente por estar viva. Abandonei ao relento das gôndolas as caixas, congelados, latas e sprays. Abandonei a morte no supermercado e caminhei à luz do dia procurando Walt Whitman sem encontrá-lo, carregando nas sacolas vinho e pão e queijo. No fone de ouvido, misturado ao ruído do ônibus que passava ao meu lado, tocava Style it takes, com John cantando… Let’s do a movie here next week… Fiquei com o frescor desse verso. Quando estávamos na universidade queríamos sempre fazer um filme na semana que vem e esse espírito livre vive em mim até hoje: Vamos fazer! Caminhando para longe do supermercado, cruzando ruas, ignorando semáforos e o movimentado tráfego do Letes ao meu redor.Uma ilha cercada de música, cercada de mortos que cantam aos mortos e vivos que cantam aos mortos e cantam porque… porque do contrário o supermercado vencerá. E isso não pode acontecer. A AfetoAllenGinsbergAndy WarholBraulio tavaresBrian EnoContoCrônicaDylan ThomasLaurie AndersonLou ReedMemóriaMorteMúsicaToinho Castro