Diversões eletrônicas — Viva Arrigo Barnabé!

Texto de Toinho Castro


Era o Ano da Graça de 1983 e eu folheava uma revista chamada Pipoca Moderna. Era uma espécie de pré revista Bizz, reunindo música, cultura pop e assuntos afins. Era um jeito de me manter minimamente atualizado lá no Recife, onde revistas importadas mal chegavam e o rock ainda não era um assunto de destaque como nos dias de hoje. E lá estou eu, perscrutando as páginas da Pipoca Moderna quando me deparo com essa foto, um sujeito com o rosto meio escondido por um livro aberto, Poemas, do poeta Vladimir Maiakóvski. Era tipo uma edição obrigatória, com uma seleção de poemas traduzidos pelos irmãos concretistas Haroldo e Augusto de Campos, e por Boris Schnaidermann, ensaísta e tradutor nascido na Ucrânia e radicado no Brasil. Publicado corajosamente, pela primeira vez, em 1967, plena ditadura no Brasil, esse livro vinha atravessando gerações. Recentemente comprei a edição comemorativa de 50 anos, capa dura, revista e ampliada.

Eu já estava há tempos ligado em poesia e Maiakóvski e tudo que vinha filtrado pelos irmãos Campos. Bota aí Mallarmé, os provençais, Ezra Pound, essas coisas, já me achando meio chique; então quando vi o livro, parei ali mesmo, curioso quanto ao personagem que se escondia por trás dele. Parece que aquele livro me reservava mais uma grata surpresa. Meu gosto por literatura estava mais afiado que meu gosto musical, que capengava em certo rock’n’roll que perdia espaço com a nova década. E eu ainda tinha aquela postura juvenil de só escutar rock; música brasileira era era coisa dos pais e dos tios.

Mas somente até aquela tarde em que Arrigo Barnabé me encarou por trás do livro do bardo russo.

Sim, era Arrigo Barnabé atrás do livro. Fui ler a matéria, de Pepe Escobar, e me deparei com o universo pop/erudito de Barnabé e sua Banda Sabor de Veneno, que cruzavam dodecafonismo e histórias em quadrinhos, tudo maturando numa longa tradição do cancioneiro popular e marginal brasileiro. Não lembro bem do que estava escrito ali, mas me despertou para o que aquele sujeito andava fazendo. Clara Crocodilo, primeiro disco de Arrigo, pareceu-me um farol no meio de uma escuridão que desabou sobre mim. Lendo aquelas páginas pensei: Porra, tô escutando a música errada! Assim, nem estava; não era assim também, mas era o que eu me vi sentindo e foi o que me impulsionou a buscar o disco pelas lojas do Recife.

Lembrando: Não havia internet e eu não tinha pistas desse LP no Recife. Era eu e o centro da cidade, numa busca quixotesca pela luminosidade do meu novo anti herói musical e seu disco-bomba: Clara Crocodilo! O detalhe é que eu não fazia ideia do que havia naquele disco, não havia YouTube para conferir antes se era legal; aquilo nem tocava em rádio ou programas de TV (pelo menos os que eu conhecesse…) Se eu quisesse descobrir, teria que encontrá-lo. O negócio era bater perna na cidade, vasculhar lojas e sebos. E foi o que eu fiz, assim que tive dinheiro para poder comprá-lo.

Lançado em 1980, de forma independente, Clara Crocodilo chegou por fim às minhas mãos numa provável 2ª edição da Barclay, que se não me engano era um selo da Ariola (pesquisem!). Não faço ideia de como esse disco foi parar sob esse selo. Enfim, pude escutar a saga de Clara Crocodilo, o office-boy mutante, vítima dos laboratórios inescrupulosos e da vida tediosa e massacrante da grande metrópole. Vaguei com ele pelos bares, pelos postos avançados das diversões eletrônicas, luzes piscantes e completa falta de sentido na vida, qualquer vida.

Era um balcão de fórmica vermelha

Música brasileira e boteco sempre andaram de mãos dadas, mesmo quando a música era atonal, de vanguarda, despudoradamente contra a canção bonitinha pra tocar no rádio. Clara Crocodilo era pra tocar terror no rádio! Aquilo mudou tudo, trocou tudo de lugar. E no veio que corria o trabalho de Arrigo, eu percebi a música brasileira, sua tradição explodindo mas ali, como um copo de cachaça no balcão, de fórmica vermelha, do bar. Arrigo, curiosamente, com seu manifesto, me apontou na direção da tradição, num movimento inexorável. Minha mãe escutava aquilo e não entendia nada, enquanto aquilo me aproximava dela, do cancioneiro que ela trazia consigo, de família, e que havia se perdido em rótulos industriais da MPB.

Aliás, durante um tempo minha mãe achou mesmo que Arrigo Barnabé fossem duas pessoas, Arrigo e Barnabé. E talvez fosse mesmo, numa espécie de Jekyll e Hyde, desconstruindo a música brasileira e ao mesmo tempo a conduzindo pela mão. Clara Crocodilo, em sua intensidade agressiva, no seu ritmo de HQ mergulhada em ficção científica, na tensão que derramava pelos becos da cidade grande, era uma espécie de relicário. No mesmo bar  frequentado por Durango, o office-boy, eu podia imaginar os acordes de Abismo de Rosas, de Dilermando Reis, ou um Orlando Silva. Porque tudo está malditamente conectado.

E dali, da seara de Arrigo, saiu o canto de Tetê Espíndola e de Vânia Bastos, num sonoridade brasileiríssima, que ecoa nos paredões de concreto da Paulista e na Chapadas Brasil adentro. Arrigo estava ainda ligado à dita vanguarda paulista, com o canto falado do Grupo Rumo, que não à toa gravou Rumo aos antigos,  reunindo canções de gente como Noel Rosa e Lamartine Babo, Sinhô… e também, claro Itamar Assumpção. Mas isso é outro assunto muito longo! Mas essa gente estava revirando o fundo da lagoa enquanto inventava o novo.

Que discaço é o Clara Crocodilo! Que paulada no fim das contas! Escrevendo assim me dá até uma saudade dele, porque não o tenho mais. Está bem guardado com um bom amigo! Mas a música ali contida espanta nostalgias e abre portas, abre mentes e não deixa pedra sobre pedra. Ali, naquele momento de vida, era o que eu precisava, romper com aquele que eu achava que era. E naquele tempo só um disco poderia fazer isso comigo. E esse disco foi Clara Crocodilo.

À propósito, não abandonei o bom e velho rock’n’roll meio datado que eu aprendi a amar. Tinha espaço pra tudo, agora tinha espaço e esse foi o aprendizado. Mas a saga do office-boy Durango estava ali como um marco, acusando que LP da minha vida tinha virado para o lado B.

PS. Não muito depois, lendo Feliz ano velho, de Marcelo Rubens PAiva, encontro uma deliciosa descrição do seu encontro com Arrigo Barnabé num festival de música universitário. Queria ter estado ali!


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