Paisagens do interior + 2 poemas Revista Kuruma'tá, 16 de agosto de 201930 de dezembro de 2019 Uma das coisas que sempre encantou em Numa Ciro é seu profundo potencial poético. Para-me ela, sempre, um poema a beira de explodir, emergir, se infiltrar na realidade, acabando por rompê-la. Numa tem humor, é esperta e cheia de ritmo. Impossível ler um poema seu, quem a conhece, sem imaginá-la cantando, soprando sua voz entre roda de amigos e incautos. Viva Numa Ciro! Toinho Castro Poemas de Numa Ciro Teatro Cândido Mendes / Ipanema — Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2013Foto de Claudia Ferreira Paisagens do interior 1.Moça rindo na janela pastorando seu amorUm grupo de analfabetos votando no seu doutorPapagaios indiscretos imitando gravador cruz na beira da estradasala-de-estar na calçadafaca-peixeira afiadae santa em cima do andor Isso tudo ainda se vê em paisagens do interior 2.Tem folheto cordelista vendido em banca de feiraMatuto em lombo de burro com relógio na algibeiraGuinés cantando “Tô fraco” e gado comendo em cocheira surdo chamado de moucoas santinhas do pau-ôcoconchas de quenga de côcoe quengas que vendem amor Isso tudo ainda se vê em paisagens do interior 3.Uma cabra displicente atravessando a rodoviaum pavão misterioso namorando a cotoviaonça pintada das brabas bafejando a cantoria pra qualquer dor, um cachetepra viajar, marinetepro escuro, frachileteLampião tem seguidor Isso tudo ainda se vê em paisagens do interior 4.O sol caindo na serra e a lua subindo pra verpor um momento se olham: morrer parece nascerquem viu os dois nesse instante, jamais consegue esquecerE pra cantar o elogiodesse encontro de amorcriou-se o tal desafio:contador-e-cantador Isso tudo ainda se vê em paisagens do interior 5.Mas existe a tal mudança que mexe em tudo e jamaisengana o tempo que passa e passa o tempo na pazPois não é que a tal mudança mexeu na moça! e o rapaz? Agora andam de motonão querem vender seu votoda internete, devotoo povo sabe o valor Isso agora já se vê em paisagens do interior. Os sete pecados em cantoria A Gemedeira dos sete pecados na capital dos pecadores sem pecado IA preguiça Eu gemia de preguiçadia e noite, noite e dia.Gemo ainda, em todo canto,no quarto, na livraria.Gemerei por toda vida,ai ai ui ui,a preguiça é minha guia. O gemido é mais gostosose eu mastigar devagar.Com preguiça bebo água,me arrastando, tento andar.Gemerei a terra inteira,Ai ai ui ui,a preguiça é o meu lugar Gemo alto de preguiça,gemendo me sobressalto.Gemo baixo quando canso.Diz mexer, escuto assalto!Gemo de tudo e de nada,ai ai, ui ui,a preguiça é meu asfalto. Só adormeço gemendo,acordar é pesadelo.Fazer sexo é cansativo.Sonhar, nem de brinquedo!Gemo sem fim, sem parar,ai ai ui ui,a preguiça é meu levedo. Estou com fome, mamãe…chamo gemendo mãinha. Responde a mãe, carinhosa:“Traga seu prato, filhinha!”Não quero mais, já passou,Ai ai ui ui,me cansa ir até a cozinha. IIA Gula Eu mastigo sem parar.Como sempre o tempo todo.Meu apetite é voraz:ganho do padre e do lobo.Eu só penso em guloseima,Ai ai ui ui,a gula é meu farto consolo. Já nasci chupando os dedos.Mamei em mamãe e na ama;nas visitas à vizinhade resguardo em sua cama.Mamei até nas cabrinhas!ai ai, ui ui,gulodice me deu fama. Criança sedenta e faminta,só brincava de casinha.Era sempre a cozinheirae até a boneca, tadinha!vivia com sede e com fome,Ai ai, ui ui ui,me chamavam gulozinha. Só compro em lojas que têmutensílios de cozinha:Copo, prato, guardanapo,comida pronta, quentinha,bebida de todo tipo,Ai, ai, ui, ui,não quero outra vidinha. Quando vou ao shopping center,não vejo roupa nem joia;não compro nada pro quarto;oh! doce de paranoia.Eu salto sem pára-quedas,Ai, ai ui, ui,mas num nado sem a boia. IIIA Ira Vivo da ira que eu tenhode tudo que há nesse mundo.Odeio mamãe e papai.Dos Irmãos, ódio profundo.A ira pulsa em cada nervoai ai ui ui,do meu coração vagabundo . Irado meu choro ao nascer.Não conheço compaixão.A flor do ódio cultivo,levo um cacho em cada mão.De raiva pretendo morrer,Ai ai ui ui, Flores do mal no caixão. O ódio danado qu’eu tenho,cresceu com as ervas daninhas,nascidas no abandono;de amores perdidos, filhinhas.Os frutos maduros colhidos,ai ai ui ui,divido com as minhas vizinhas. As sementes dessa irafecundo em latinhas de ódio.Nas estufas do silênciocultivo-as como-se-fossem-d’ópio.Odeio a bondade e a féai ai ui ui,eu fumo a ira no pódio. Apago as estrelas da noite!Quebro a varinha de condão.A fada madrinha eu enforco,Papai Noel pro lixão!com saco e tudo que há dentroAi ai, ui ui,só guardo a raiva do cão. IVA Inveja Eu me mato de inveja,de quem vive sem sofrere tem tudo e mais um pouco,ganhando a vida ao nascer.Herdei a inveja de tudoAi ai, ui ui,que está fora do meu ter. Invejo as pernas da misse,e a cintura de pilão.Quero os peitos de Tieta,ser a musa da cançãoe ouvir, por onde passar,ai ai, ui ui,“Eu derrubo esse avião”. A inveja me consome,quando não tenho o que eu quero.Minha inveja tem os nomesdas coisas que mais venero.Cobiço as mulheres alheiasai ai, ui ui,Inveja é meu par no bolero. Quando entrei naquele quartoeu vi com a inveja dos mortosmamãe mimando outro filhono meu cantinho em seu colopapai olhando os seus braçosai ai, ui ui,furei meu pai bem nos olhos. Saí de casa bem cedo,pra ter inveja bem longe,inveja das que cobiçatudo e todos quando e ondeaparece o que desejoAi ai, ui ui,Pela inveja eu virei monge. VA luxúria Eu acordo e me apaixonoe passo o dia com vontade.à tarde me pego querendo,a noite inteira, é verdade!Eu vivo nadando em prazerai ai, ui ui,em luxuri-oh-cidade… Em tudo que há nesse mundo,que qualquer um diz: bom, bons,existe um mal que eu não troconem vendo a imagem dos sonso bem e o mal no meu blocoai ai ui ui,gozam dos dons e nos tons. Só de pensar me dá luxúrianas pernas, no olhar e nas ideiase o corpo brinca com a almade vadiar nas boleiados caminhão nas estradaai ai, ui ui,pra ter gozo de plebeia. E como gozarão as santas?E a onça em pleno cio?Psiu, não geme tão alto,te vira na lata, amor mio!cachorra que gosta de funkai ai, ui ui,pega o trem no assobio. Caço a noite atrás do dia,o rabo é quente, é um açoite.Quem trepa na cama dos outrosnão teme lâmina, nem coice.O cu dos outros não é o nosso,Ai ai, ui ui,luxúria nossa de cada noite… VIA Avareza Eu quero tudo pra mim.Não abro a mão para dar.Só bebo a seiva da vida,nem a morte vai tomar.Eu tranco a vida no cofreAi ai ui uiAvareza vai guardar. Nem Moliére dormindono seu avaro colchãosonharia com um personagemsovina que nem meu vilãoque tem medo de perderAi ai ui uiaté a poeira do chão. O meu nado sincronizadono lago de ouro derretidocunhou a moeda talismãde tio Patinhas, no vestido.Para fantasia avaraAi ai ui uiA riqueza é o tecido. Mesquinho, mão-fechada,mão-de-vaca, pão-duro e avarento,são nomes para quem pegacarona nas costas do ventoAi ai ui uiE não dá nem um por cento Uma avara como eu,que tem vergonha de ser,é uma vara envergadanas avarenças do terela só sente a avarezaai ai ui uiquando ela teima em são ser. VIIA Soberba Eu tenho orgulho de mime de tudo o que é meu.Eu tenho mais é que tertudo que querem meus eus:eles só pedem ao mundoai ai ui uio mundo todo e até Deus. Ninguém merece o prazerque a vida a mim me oferece.A minha vida se fartana delícia que se esquecede tudo e de todos, nem desce!ai ai ui uia vaidade me aquece O orgulho e a presunçãosão balinhas de festim,se os comparo à arrogância,projétil largado de mim.A tirania é meu forteai ai ui uiEu prendo e mato tudim . Eu sou melhor que você.Ninguém consegue alcançaro lugar onde eu cheguei,de onde eu posso mandar.Mando no reino e no reiai ai ui uiMando o bicho te pegar. A soberba é minha forçaA vaidade me animaNo orgulho eu me sustentoA prepotência me estimada tirania eu extraioAi ai ui uiAs truculências da rima Romeu e Julieta: como escaparam da tragédia Um romance paraibano(Este Romance faz parte do espetáculo A Peleja da voz com a Língua – O Amor) Romeu Julieta! Julieta! Pareces morta!!!Não posso acreditar.Jurei contigo morrer,mas começo a duvidar… … se vale a pena partirsem a certeza de achardo outro lado da vidao que mais quero encontrar. Morreste de amor por mim.Algo me diz que não devo arriscar.Sai pra lá punhal safado.Cadê o frade pra nos salvar? A madrugada já vem.Ouço ao longe a cotovia.Se eu morri, ressuscitei.Quero ver a luz do dia. Julieta Não é a cotovia, é o rouxinol:Canta para quem anoitece.Na versão do bardo inglês,anoitece mas não amanhece. Romeu Julieta, será que ouço a tua voz?Estarei louco? sonhando, talvez!Eu tento escapar da mortee tu me salvas da viuvez! Julieta Romeu, Romeu, tu não morreste!Não preciso, portanto, me matar.Que alívio, fujamos do autor:Ele planeja nos suicidar. Romeu Julieta! Como escapuliste?Meu docinho de goiaba!Pela nossa vida amorosa,Shakespeare é quem se atrasa. Julieta Romeu meu queijinho meu!Há mais perigo em teus olhosque já viram os olhos meus.Ai meus olhos! ainda não viram tanto.Vai cegar-me a luz dos teus. Romeu Tu vês perigo em meus olhos?Queres cegá-los? São teus.Se o amor é cego, Julieta,um cego sábio e feliz serei eu. Julieta Apressemos o passo:Isso vai dar em tragédia.Não quero morrer tão nova,prefiro viver na comédia. Romeu O autor, com o atraso do frade,quis imitar as desgraças mais cruéis,tal a de Píramo e Tisbe.Prefiro viver nos bordéis. Julieta Lets go to América!Aquela! debaixo da linha do Equador,onde não existe pecadoe tem gente de toda cor. Romeu Pampas, praias, caatingas e cascatas,sambas, maracatus, bossa nova e emboladas;as mais lindas matas virgens,e lindas virgens… desmatadas! Julieta Vamos logo pro Brasil,onde a mulher tem razão.Dona Flor tem dois maridose Maria Bonita: as armas e Lampião. Romeu Mas primeiro vamos passarpelo reino de Portugal:Conhecer o Tejo em Lisboae a sua Indústria Naval. Julieta Caravelas, Romeuzinho!Quero visitar em Alcobaçaos túmulos de Pedro e d’ Inez:Não puderam escapar da desgraça. Romeu Pois…Infelizes os dois sucumbiramàs leis da casa real.Nossas casas que se danem,nosso amor é que é real. Julieta Mais rápido, Romeu!não quero meu nome naquela expressão:“Agora é tarde, Inez é morta”.Nem morta! quero tal coroação. Romeu Brasil, lá vamos nós!Pra Roliude do nordeste.Quem era besta de morrer?Quem quiser que faça o teste. Julieta Saímos daquela cova,nem Shakespeare nos viu.Enganamos todo mundo.Atrás de nós?! Nem psiu. A Campina GrandeCantoriaNuma CiroParaíbaPoesia