Ópera de retalhos sobre a verve jacksoniana (100 anos de Jackson do Pandeiro) Revista Kuruma'tá, 31 de agosto de 201930 de dezembro de 2019 Nesse 31 de agosto de 2019 celebramos o centenário de Jackson do Pandeiro, o grande Jackson do Pandeiro, nascido em Alagoa Grande, na região do Brejo da Paraíba. De lá partiu pra embolar o Brasil e transformar nosso jeito de dançar, de tocar, de ouvir e de cantar. O poeta Aderaldo Luciano, que andava sumido da Kuruma’tá, retorna pra falar de Jackson, pra falar com Jackson, no ritmo do gênio e dos caminhos que ligam a Paraíba ao Brasil. Texto de Aderaldo Luciano Discorre o primeiro Cantador: — Lembro da primeira vezQue ouvi Jackson do Pandeiro.Foi de manhã bem cedinhoNa rádio de JuazeiroO locutor disse assim:“Já está perto do fimDe nossa trilha de ouro.Escutem com atençãoMais um clássico do sertão!”Tocou: Casaca de Couro. Foz em off — Dois momentos na vida musical de Jackson aparentemente se contradizem, mas não funciona assim a escalada de um artista forte e radical como o paraibano. Todos conhecem o êxito de Chiclete Com Banana no qual o cantor assume sua radicalidade negando-se a aceitar o alastramento da música americana entre nós. O Tio Sam não respeitava o tamborim, confundindo samba com rumba, esquecendo-se das originalidades do pandeiro e da zabumba. Mas o tempo e o conhecimento foram abrindo aos poucos os ouvidos e as possibilidades jacksonianas. Ora, a influência do cinema americano substanciava-se no próprio nome, primeiro Jack, depois Jackson. Até que no disco Um Nordestino Alegre entra em cena o samba nordestino Amigo do Norte contando a história da amizade entre esses dois elementos. Todo o arranjo é plantado no diálogo entre a sanfona e o clarinete e um breve bate-papo no qual um americano de sotaque paraibano chama o Jackson de Zacks. É sensacional quando Jackson diz: “Como é, esse minino, gostasse?” Em 1981, antes de entrar no palco para mais um show em São Paulo, o Rei do Ritmo afirma estrategicamente: “Cheguei a conclusão de que tudo é coco!”. Uma afirmação condizente com toda uma trajetória que teria como balanço primeiro e fundador o coco. A obra de Jackson se confunde com dois ritmos: o mesmo coco e o samba urbano carioca sincrético com o ritmo antecessor. Dentro da panela de pressão jacksoniana ferviam os dois ritmos, um entrando dentro do outro, num matrimônio cujas premissas estavam escritas no fundo da terra. — Durante o mês de janeiro de 2016 iniciei a série de alusões a Jackson do Pandeiro, o paraibano de Alagoa Grande, autarquia da música brasileira. Certo dia desse mesmo janeiro, Lau Siqueira, então secretário de cultura da Paraíba do Norte, publicou a foto na qual aparece a estátua do Rei do Ritmo vandalizada em plena capital, João Pessoa. É uma prática, infelizmente, comum. A agressão à cidadania se dá de várias formas, inclusive atacando sua memória cultural, daquela maneira. A fotografia, pela assinatura, é de nosso amigo Aurílio Santos. Canta o segundo Cantador: — Meus olhos pingaram ácido,Depois de arregaladosAo ver a estátua de JacksonCom olhos violentados.Alguém na febre dos cães,Não respeitando as manhãsDos que zelam a tradiçãoJogou tinta em vã labutaPorque não tinha cicutaPra dar ao Rei do Rojão. Na rota dos infiéis.O sol teve olhos vazadosO dia perdeu seus pés.Ritos inegociáveisNesses dias tormentáveisFerem homens coerentes.Mas há vontades secretasNas mãos de falsos poetasCom suas pautas doentes. O certo virou o errado,O cão mia e o gato late,A lama é a tinta que estáNa caixa do engraxate.Quem vandalizou a imagem?Quem manchou a homenagemFeita a Jackson, o imortal?Talvez que nunca apareçaAté que a gente se esqueçaE ache tudo normal. Cantador: — Se eu tivesse, de Jackson,Um pouco do seu carisma,Migalhas de sua ginga,O alcance de um seu melisma,Seria só um babauQue todo dia se abisma. O pandeiro de Jackson foi açoitePois seus dedos pulsavam de energia.Todo o Sol se calava, sendo dia;Transformava-se em Lua, sendo noite.Para que o incauto não se afoite,Pegue a música Chiclete Com Banana.Escute-a por toda essa semanaReparando no solo do pandeiro.É açoite, sol, lua e candeeiro.É a iluminação, pari-nirvana. Do lado da rua, do concreto, do asfalto, dos cabarés e arranca-rabos, reinou o Rei do Ritmo. Pois é: Zé Gomes Filho, o Jackson do Pandeiro. Do couro e dos guizos do seu instrumento vimos a professorinha Dona Filomena soletrando o Bê-a-bá, valentões acabadores de forrós amolando suas facas, gafieiras intermináveis pelos subúrbios do Rio de Janeiro, mulheres que trocaram de sexo numa viagem feita a Hollywood. O coração de Jackson pulsava saltitante e inebriava nossos tornozelos. O zabumbeiro desprevenido atravessava o rojão se não entendesse sua sincopagem. Dizia que todos os ritmos provinham do coco, inclusive o rock’n’roll. Jackson desafiou Tio Sam, traduziu o linguajar da saparia na Lagoa do Paó (às margens de onde nasceu), ofereceu tutano e xarope de amendoim pra quem andava caindo do banco. Teve até coragem de peitar Gonzagão, dizendo que seu baião, na verdade, era coco. Foi-se embora, encantado e jovem. Parece que ouço sua pergunta mais que atual: — Que briga é aquela que tem acolá?… Cantador: — Jackson do Pandeiro e Almira,Na esquina do destino,Encontraram-se feito um doceQue cai na mão de um menino.Um de cá, outro de lá,Como o terço bizantino. Imaginemos agoraEsse Jackson soberanoRei do Ritmo, Rei da Síncopa,Rei do Forró Suburbano,Rei do Coco, Rei da Ginga,O Páss’ro Paraibano. Esse Jackson do PandeiroFoi primeiro e maioralRumou de Alagoa GrandeA sua terra natalVeio ao Rio de JaneiroRevelar seu cabedal. Viva Jackson, inda minino,Olhar cheio de ternuraAlma repleta de climasE cantos da saracuraPelos engenhos do brejoDoce que nem rapadura. Viva Jackson do PandeiroFilho de Flora MourãoPai da quebra do compassoSincopando no piãoSubindo e descendo o cocoDesafiando o rojão. A Aderaldo LucianoAlagoa GrandeBrejo ParaibanoCocoHistóriaJackson do PandeiroMúsicaMúsica BrasileiraParaíbaPoesiaRitmo