Texto de Toinho Castro
Ontem estive na banca do querido Olivar, aqui na Carioca, centro de Rio de Janeiro, com meu sobrinho, o Gabriel. Se você não conhece o Francisco Olivar, nem o trabalho incrível que ele faz, clique aqui e leia um texto que escrevi sobre ele e sobre esse tal trabalho incrível que o move há 40 anos… vender livros. Mas vender livros, para Olivar, é na verdade o último passo de um processo que envolve muito amor pelo livro e conhecimento da causa, da importância de não permitir que os livros morram, de colocá-los, sempre, em circulação; sempre na mão de alguém.
Mas eu estava falando mesmo era da minha ida à banca do Olivar com Gabriel, e já ia contar do livro que acabei trazendo comigo pra casa. Mais um livro usado para a minha modesta biblioteca alimentada cada vez mais por livros usado. E não faça pouco caso dos livros usados, pois os livros novos tornam-se usados na mesma hora em que são comprados. Livros usados são aqueles que realmente existem; os que moram no limbo das estantes e vitrines das livrarias estão apenas aguardando para se tornarem livros.
Uma das coisas que me maravilha nos livros que compro nos sebos são as dedicatórias. A dedicatória faz parte do livro tanto quanto um prólogo ou os capítulos. Uma vez inscrita na folha de rosto, a dedicatória torna qualquer livro um objeto único, influencia a forma como o lemos, muda seu sentido. Quando leio uma dedicatória num livro, penso naquelas duas pessoas, naquele encontro. Penso no momento mágico em que uma deu com o livro em alguma livraria e pensou na outra…. essa coisa do presente é muito linda, né?! Não falo das obrigações, das datas, de ter que dar um presente. Falo dessa outra situação, carregada de vontade, muitas vezes de espontaneidade, quando uma pessoa se conecta a outra por meio de um objeto mágico, como um livro. Penso logo numa molécula, dois átomos unidos por uma forte ligação que os transforma, a ambos, em uma outra coisa.
Havia nesse livro que eu peguei com o Olivar uma dedicatória linda. Escrita com letra delicada, caneta de ponta porosa, preta, e adornada com desenhos que evocam a história contida no livro, a dedicatória é endereçada a um casal, familiares de quem a escreveu. Na mesma hora me animei a escrever um texto sobre essa dedicatória para a Revista Kuruma’tá. Na mesma hora pensei em fotografar o livro, a caligrafia cursiva e flagrar aquela gentileza, possivelmente carregada de amor.
Só que percebi que quem escreveu a dedicatória foi a mesma pessoa que escreveu o livro, um livro de memórias. Memórias compartilhadas amavelmente com aqueles dois, não só nas páginas como na vida. As histórias ali contadas eram histórias da família, de suas aventuras e graças. Um resgate de infância, um gesto de registrar coisas que de outro modo estariam dormindo no passado e aos poucos sumiriam. Então de repente me veio um pudor… o pudor de abrir a caixinha em que o livro havia se transformado e revelar os protagonistas daquela intimidade. Lembre que quem escreveu aquelas páginas ainda está entre nós e que, de alguma maneira, aquele presente foi parar nas mãos do Olivar, no centro do Rio de Janeiro. Pensei nos mil caminhos que levaram o livro até ali e todos me pareceram meio tristes. Pensei que relevar esse deslocamento seria expor, talvez, um dessas histórias tristes e suas personagens. Será que o casal presenteado faleceu e no desmontar de seu lar os livros foram dispersos, numa diáspora impossível e rastrear? Ou doados? Ou perdidos?
Achei por bem então manter fechada a caixinha dessa narrativa que se criou a partir de uma dedicatória. Teria sido feita num dia de chuva ou de noite estrelada? No aconchego de casa ou na festa do lançamento do livro, em meio a sorrisos e gente estranha? E ali a família subitamente reunida em torno de uma coleção de memórias, de dias na praia, de primos, tios, avós… E aqueço-me na pequena vaidade de compartilhar da intimidade dessa dedicatória, de ser o sujeito oculto, observador de tantas linhas temporais e afetivas se cruzando num pequeno texto, escrito a mão, num certo setembro de 1991.
Contenho minha ansiedade e me sinto o guardião silencioso de um registro de carinho, de palavras de afeto. Desse momento único em que pessoas queridas se encontram e fortalecem, por meio de um objeto mágico, um vínculo que os transforma numa molécula, em algo vivo e vibrante, que brilha à distância. No tempo e nos espaço.
PS. Ainda sobre dedicatórias e meu amor por elas, você pode ler o texto Com um beijo de Judite, que escrevi aqui para a Kuruma’tá, em março desse ano.