Será? Revista Kuruma'tá, 23 de outubro de 201911 de março de 2021 Uma voz nova chegando na Revista Kuruma’tá! Enquanto participávamos do atentamente do Festival Levada recebemos essa mensagem, perguntando se tínhamos espaço para uns textos… e sim, tínhamos. E temos. E assim Laura Limp, atriz, feminista, mãe de três, poeta, letrista, performer, fotógrafa, diretora, tradutora e inquieta. Sim, tudo isso e ainda mais. Quem chega na Kuruma’tá é sempre múltiplo! Detalhe, Laura estava trabalhando com o Levada e foi assim que as pontes se deram! E aqui está seu primeiro texto carregado de poesia, lírico e onírico e desafiador. Bem-vinda, Laura! Toinho Castro (Editor) Texto de Laura Limp e a feira começando seu monta-monta colorido. e o dia ameaçando chegar mas não chegando. e o vento fazendo as folhas fofoqueiras e amareladas das copas largas das árvores conversarem comigo. e eu lá, meio fingindo que não escutando, mas meio sabendo do que falavam. e essa vontade de sair correndo até que os pés desistam do solo. e todos os detalhes da minha antiga rua (que é caminho pra sua casa) subitamente tão diferentes. e tudo de estranho nesse trajeto que faço agora, à contra gosto, de volta pra minha casa, ferindo meus olhos. como a santa na portaria do prédio que eu sabia de cor, porque queria habitar como planta as varandas dele. como o formato de rosto na parede descascada do outro prédio de esquina ou aquela pomba amassada na calçada e ainda viva, sofrendo em silêncio, perto do meio fio partido. e tem também aquele fusca cor de barbante estacionado que nunca saiu de lá e não vai sair porque eu proíbo. tudo que fazia aquela rua me ser conhecida e ser trajeto (e de um jeito meio bobo ser também afeto) vai virando do avesso, como minhas veias-galhos sufocando os músculos cansados daquela dança estúpida que teimamos em não dançar. e agora, esse disparar de corpo que não quer ir e não quer voltar. essa adrenalina de dentes. essa coisa fósforo acesso na mente e entre as pernas colorindo o rosto de vermelho. essas perguntas todas, como gigantes cães de algodão, flutuando e ganindo baixinho. ignorando a rua que está num abandono de dar nó no peito e na garganta. ignorando o perigo do grito que não terá ouvidos. mas depois de tudo pelo avesso e tomando vento e tomando vento e ardendo e retendo poeira e ardendo mais, nada mais assusta. é translúcida a vontade de sair caminhando assim, num trajeto de flecha torta. o rosto contorcido e perplexo, antecipando o rio que chega, desgovernado feito tromba d’água, e não poder (ou querer) fazer nada além de deixar que ele siga seu curso como sigo o meu. sair caminhando, roçando a sola do all star encardido no concreto-tinta-sujeira-cocô-e-pó e sentir a eletricidade dos cabos de alta tensão nos cabelos soltos e o calor do vento atravessando o peito de chuva que vai chegar. enquanto isso, observar os pássaros, que talvez sobrevoem a minha imaginação sonhando, em pleno vôo, com os dias esverdeados de mar. saí de entre travesseiros e olhares-esfinge com vontade de ficar mais e me dissolver entre as estampas feias do teu lençol e a cor morena da tua pele. para que nunca mais sentisse essa coisa que é partir sem saber de nada, nem de si. para que desaparecesse, como quem nunca esteve caminhando por aí, quase entendendo as coisas. para que desfraguimentasse minhas partículas-memórias em esquecimento líquido e selvagem até ser capaz de, novamente, frequentar aquela feira e seus ruídos sem estremecer com a vontade que me arrasta o espírito, contrariado, até a sua porta. só para juntar os seus caquinhos de mal-entendidos idiotas. tudo isso porque, um dia, alguém te disse que a gente não era possível. meu amor, te canto como Marina: “pátrias, famílias, religiões e preconceitos. quebrou não tem mais jeito não.” Imagens de Laura Limp A ContoCrônicaFeira de ruaLaura LimpLeituraLiteraturaPoesia