Para aquele senhor de branco ali na janela Revista Kuruma'tá, 5 de novembro de 201930 de dezembro de 2019 Texto de Eduardo Frota A janela do apartamento era ampla, com as cortinas sempre abertas, deixando a luz do dia banhar a pequena sala e tocar o piano silencioso que ficava em um dos cantos do cômodo. Houve um tempo em que todas as manhãs, do alto do sexto andar, ela se debruçava no parapeito e observava o movimento lá embaixo. Depois, abria o piano e tocava a valsa que compôs aos 15 anos de idade para o namorado, que mais tarde viraria seu cônjuge, que muito mais tarde faria o passamento deixando-a saudosa. O processo de senilidade se instaurou de forma abrupta. Não chegava mais à janela, nem tocava no instrumento, agora já enclausurado pelo tempo. A janela, esta era aberta todos os dias pela acompanhante para que a luz continuasse banhando o recinto e para que o vento fizesse suas visitas diárias. Um dia, no entanto, outro visitante apareceu. Inesperado, lá estava ele sentado no parapeito. Vestia calça de linho crua, camisa branca com as mangas impecavelmente dobradas e sapatos lustrosamente brancos. Em uma das mãos, segurava um cigarro aceso que parecia nunca ser consumido pelo tempo, nem apagado pelo vento. Ele não dizia nada. Apenas olhava para ela com um semblante sereno, tranquilo, como se estivesse contentado em não receber atenção de ninguém. Ela pediu para que a acompanhante oferecesse café e bolo. — Para quem?— Para aquele senhor de branco ali na janela. No mesmo dia, as filhas foram informadas do acontecido. Explicaram a ela que não havia ninguém ali e que isso nem ao menos seria possível. Como o senhor de sapatos brancos teria subido os seis andares da fachada do prédio? Ela foi levada ao médico, que receitou alguns remédios. Contrariada, engoliu cápsulas coloridas, torcendo, no fundo, para que o visitante de branco voltasse no dia seguinte. Na manhã que se seguiu, ele apareceu novamente, mas desta vez na janela do banheiro, minúscula, enquanto ela tomava banho. Ruborizada, pediu que ele virasse o rosto, ao que foi prontamente atendida. Sentia certa intimidade e por isso não o enxotou dali. Enquanto era secada pela cuidadora, pediu que fossem providenciados café e bolo — Para quem?— Para aquele senhor de branco ali na janela. As filhas começaram a ficar preocupadas com a recorrência do que acreditavam ser uma piora dos sintomas. O médico prescreveu outro medicamento. Ela engoliu mais cápsulas coloridas, mais contrariada do que nunca. Queria vê-lo novamente no dia seguinte e oferecer pelo menos café e bolo. Foi dormir ressabiada. Quando acordou, ele estava na janela do quarto, de cigarro em punho, asseado e bem vestido. Ela chamou a cuidadora e pediu para que a mesma passasse um café, sem dizer que o visitante ali se encontrava. Para acompanhar, gostaria de um bolo. Assim foi atendida prontamente. Sozinha, colocou a bandeja ao lado dele, que sorriu. No entanto, antes mesmo que ele pudesse tocar no que lhe era oferecido, a cuidadora retirou a bandeja da janela e a colocou na mesa de jantar. Ela retrucou que isso era falta de educação com o visitante, que o café e o bolo não eram para ela. — Para quem?— Para aquele senhor de branco ali na janela. Durante algum tempo, talvez por conta do novo receituário médico, ela não mais o viu em nenhuma das janelas do apartamento. Na incapacidade de servi-lo como uma boa anfitriã, lembrou-se de ter guardado o antigo cinzeiro que seu finado e amado esposo usava todos os dias. Colocou-o delicadamente sobre o peitoril da janela da sala e se afastou, sem dizer uma palavra. Em uma manhã de sol, na qual a luz banhava o piano no canto do cômodo, resolveu tocar aquela antiga valsa. Ao terminar a última nota, foi à janela debruçar-se para observar o movimento lá embaixo, algo que não fazia há tempos. A vida lá fora continuava, ocupada, a rua estava viva, movimentada. Olhou para o cinzeiro e percebeu que ali havia cinzas. Sentou-se à mesa da sala de jantar e chamou a cuidadora. Pediu um café fresco e um pedaço de bolo. Comeu e bebeu, refestelada, em silêncio, enquanto as filhas eram informadas que, ao que parecia, ela havia decidido começar a fumar escondida aos 90 anos de idade. Foto: Rita Hayworth em Gilda / Crédito: Alamy A AfetoContoEduardo FrotaVelhice