Texto de Toinho Castro
Eu já conhecia Chico César de Mama África, sem dar muita atenção. Tocava ali na rádio e eu sabia do que se tratava, mas não me chegava. Certo verso de A prosa impúrpura do Caicó, na voz de Elba Ramalho, no Grande encontro, me comoveu; Em meu peito Catoláico / tudo é descrença e fé. Mas foi aderaldo Luciano, sentados que estávamos à mesa da Galeteria Cruzeiro, ali na saída Rio Branco do metrô da Carioca, que trouxe pra realidade da dimensão de Chico César e sua obra. Corri pra casa, né… pra ouvir, com as palavras de Aderaldo zoando na minha cabeça. E por confluências destinais, Chico havia há pouco lançado seu disco mais recente, o poderoso O amor é um ato revolucionário. Mas cheguei e botei Elba. Caicó arcaico, me chamando de longe. A voz e Elba não é simplesmente uma voz, mas uma tradição que se conecta e dá linha ao canto das mulheres nordestinas, carpideiras, lavadeiras, entoando loas. Que beleza.
E o mergulho em Chico César deu-se assim, eu na minha batisfera, adentrando essa densidade nascida em Catolé do Rocha, no sertão paraibano. Escutando disco a disco, do mais recente ao mais antigo, Aos vivos, de 1995. 25 anos de Chico César, cada vez mais fundo, até quem sabe o chão comum de todos nós que viemos daquelas sesmarias. Só que nesse mergulho, ao invés da escuridão se fechar, abriu-se a claridade. A música de Chico César é esse cruzamento de caminhos numa clareira; a gente chega a arregalar os olhos pra receber o máximo dessa luminosidade cheia de esperança .
O amor é um ato revolucionário
Quem vive amando dando amor e sendo amado
Colhendo o que lhe é oferecido
E a si mesmo se coloca ofertado
Se este está nu veste-o manto sagrado
Que ao que ama o infinito faz vestido
De deus e os deuses sim é o mais querido
Mesmo no escuro seu sentir é iluminado
O amor é um ato revolucionário é um disco demolidor, preciso, moderno e eu poderia continuar com uma lista de adjetivos, mas adjetivar é errado, né? É o disco certo, na hora certo e no tom perfeito para um país alucinado numa viagem e autodestruição. Disco de alerta, de chamamento, de força. ão, não é um manifesto. É uma resolução, que estabelece o necessário e o inaceitável. É, sobretudo o território da poesia, que é do poeta que vem a revolução do amor, e o amor não alisa quem quer esmagá-lo. Canta Chio em Pedrada: Fogo nos fascistas! / Fogo, Jah! O amor que é amor quer quebrar tudo, quer incendiar a Babilônia , que nos quer carne para moer.
Nos últimos dias, esses dias que vocês sabem que dias são, a música de chico César tem nos alegrado, nos comovido e animado. Abre o dia e o Spotify derrama Chico César na nossa casa. Tem aquele desenho do Tom & Jerry em que eles inundam a casa e depois, com os fios da geladeira (não tente isso em casa!!) eles transformam tudo numa pista de patinação. É isso que acontece aqui, com esse alagamento que essa música provoca e evoca. E é nisso que a gente patina e baila o dia todo.
Aquele disco, estado de Poesia, é inacreditável. Começo o dia sempre com Caracajus, uma canção de amor que só podia ser mesmo uma moenda de cana. Um coração-moenda. Quando escuto lembro das minhas viagens de infância a Natal, atravessando a a Paraíba. Os canaviais estendidos a perderem-se de vista e as usinas. O cheiro das usinas, que eu ansiava dentro do ônibus da Nápoles. Pertinho de Goiana, já chegando no limite com a Paraíba, onde a estrada ficava melhor, tinha a Usina Nossa Senhora das Maravilhas, e na entrada dela a Igreja de Nossa Senhora das Maravilhas, e logo depois vinha a Paraíba. Caracajus… Uma palavra que eu não sabia o que era até o próprio Chico explicar essa mistura de Caracas com Aracaju, fundindo-se no afeto e na ilusão da distância de uma história de amor. E dá nisso… Caracas, Aracaju, a BR-101 cortando Pernambuco, Paraíba e Rio Grade do Norte, até Natal. Porque uma canção é vetor de muitas histórias e imaginações, independente da história que ela conta. E por causa da história que ela conta.
Fogo na caldeira
Da usina
Fogo na caldeira
Sucos e melaços
Caracajus
Caracajus
Caracajus
Chico César é essa Borborema que atravessa um Brasil, puxando ritos, alinhavando linhagens de cantadores, de poetas do povo e das ancestralidades. É comovente. No palco de Estado de poesia – Ao Vivo, parece mais uma Entidade que não e diz o nome à toa. Monólito de uma cultura diversa, entrecortada de África, Sertão, Atlântico, América. O disco é uma disco de história, porque na música desse moço convergem muitos rios da música brasileira e Chico lhes dá a direção do mar. Uma voz libertária e destemida, que se ergue, Borborema, contra o moedor de gente, contra o fascismo, contra a banalização do mal e pelo amor, pelo mel do melaço e pelo museu das vidas, do jambo pendurado no jambeiro. Que alegria e honra ter Chico César tocando na vitrola eletrônica e streamíca aqui de casa. Quando pela manhã nos instalamos na sala, Raquel pergunta: Cadê ele? Ele é Chico César… eu vou lá e dou play e o mundo se torna essa calçada explodindo em flor.
Às vezes, no fim do dia, escutamos Reis do agronegócio, essa cantilena oratória devastadora, que não deixa pedra sobre pedra do cinismo canalha de quem destrói o campo, a vida e o futuro. Doloroso alerta. Chico não tem medo de dizer o que precisa ser dito. E que seja dito em poesia. Poesia que reina soberana. Jah!
Vou dormir hoje com “O Amor é um Ato Revolucionário”.
Que beleza, Zidi!! É um discaço!