De onde eu vim não dá pra andar na rua

Texto de Toinho Castro


Malditos portais dimensionais! Estão em toda parte… quem inventou essa moda? Vocês, do século 21, ficam aí reclamando que o trânsito é infernal… vocês precisam ver as soluções que inventaram e o caos que se instalou no nosso dia a dia. Primeiro foi o teletransporte, o sonho de todo mundo que assistia Star Trek. Não muito tempo depois da implementação em escala planetária de cabines para teletransporte, o sonho virou pesadelo. Pessoas sendo desmanchadas de um lado da cidade para terem seus átomos reunidos do outro lado. Virou uma febre, ninguém mais conseguia ficar parado. Todo mundo se teletransportava pra lá e pra cá porque era fácil e barato.

Aí ocorreu um sério debate que ofuscou o brilho daqueles anos. Quando uma pessoa é teletransportada e tem seus átomos, partículas ou sei lá o quê desagregados e jogados no espaço… essa pessoa ainda existe? O que ela é enquanto está no percurso entre uma cabine e outra? Nada? Ninguém? E ainda mais: se uma pessoa é aquele grupo de átomos reunidos sob circunstâncias específicas, podemos dizer que esses mesmos átomos, desagregados e reagrupados numa circunstância completamente diferente, são a mesma pessoa? Ou seja, uma pessoa teletransportada é a mesma pessoa? Ou uma cópia, talvez apenas aparentemente igual?

Vou te dizer que as pessoas deixaram pouco a pouco de usar aquelas cabines e ficaram muito tempo desconfiadas até de si mesmas. Naturalmente a empresa privada e monopolista que explorava o serviço faliu, fechou as portas e as cabines apodreceram nas esquinas. Dizem que algumas ainda funcionam, mas não há garantias. Alguns loucos se arriscam a usá-las, como se fosse uma religião.

Como ninguém consegue ficar sossegado, alguém teve a brilhante ideia dos portais dimensionais. O certo seria chamá-los de portais transdimensionais mas também seria certo que as pessoas não passassem fome em pleno século 22. Posso ainda dizer que certo mesmo seria não existirem portais dimensionais. Mas, enfim! Diferentemente das cabinas de teletransporte, os portais não são instalações físicas, mas alterações em determinados campos de energia que fazem com que uma pessoa praticamente tropece de uma dimensão para outra, ou mesmo para a própria dimensão em que existe, passando por uma outra, intermediária. A vantagem jurídica é que a pessoa não deixa de existir, ou pelo menos não é desmanchada em poeira de estrelas. Apenas não está aqui por uns instantes. E é tudo muito rápido.

Mas é claro que os portais proliferaram como praga e acabaram gerando campos de instabilidade em áreas inesperadas. Acontece que muita gente saía para comprar o pão e ia parar numa outra dimensão, habitada por dinossauros inteligentes e egoístas, porque dobrou na esquina errada, numa hora inconveniente. Não preciso dizer que nem todos os portais estão sinalizados e que muita gente aprendeu a fazê-los por conta própria. Tem gente que cria portais no meio da cidade só por anarquia. Agora imagine que andar pela cidade se tornou arriscado para qualquer um. Que mãe deixaria seu filho passeando de bicicleta por aí sabendo que os portais estão se multiplicando e que muita gente não volta dessas viagens.

Bem, agora vocês já sabem como eu vim parar aqui, porque os portais atuam deformando não só o espaço como também… o tempo! E aí você pode ir parar num outro dia, outro século. E foi desse jeito que… eis-me aqui e agora! Bem pensando positivamente, melhor pra mim, pois assim não corro o risco de encontrar comigo mesmo. Sabe-se lá que tipo de confusão isso ia acabar gerando, não é verdade?

Agora é tocar a vida e vê se encontro um portal em algum lugar. Sei que eles existem por processos naturais. São raros, mas existem. Torcer para que um daqueles anarquistas tenha vindo parar aqui e criado um dos seus portais artesanais. Quem sabe esbarro com um desses num dos muitos becos dessa cidade. Não tenho a menor ideia de onde ou quando eu poderia chegar. Na verdade eu duvido que consiga retornar a algum lugar que eu reconheça. Eu tô tranquilo aqui, sabe? A vizinhança é boa e não tem portais dimensionais em cada esquina. Não tenho nada a perder e não deixei muita coisa para trás. Ninguém que venha atrás de mim.


3 comentários

    1. Quem sabe futaramente poderei desenvolver! Obrigado pelo comentário! Sempre bom receber um feedback, ainda mais citando Vonnegut.
      — Toinho Castro

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