Sonhei que acordava Revista Kuruma'tá, 7 de junho de 202028 de julho de 2020 Texto de Toinho Castro Foto: Toinho Castro Eu sonhei que acordava. Ou melhor, que era acordado por alguém. Abria os olhos e lá estava à minha frente o rosto desconhecido de uma moça, que sorriu pra mim e falou: Lembra de mim? E não, eu não lembrava. Disse-lhe, sem faltar com a verdade, que estava sem óculos e que não a enxergava direito. Ela afastou-se para fazer algo e pude colocar os óculos e olhá-la novamente. Não, eu não lembrava dela. Ela me olhou sorrindo, sempre sorrindo, como quem está diante de uma criança confusa, e disse-me seu nome. Não, eu não ainda a reconhecia mas menti e disse que sim, disse que lembrava dela; talvez pra ter tempo de entender melhor o que estava acontecendo. Aos poucos percebi que era uma amiga de Raquel e que estava ali por algum motivo que o sonho não me contou; estava arrumando umas roupas, umas gavetas, quando Raquel chegou e as duas ficaram conversando. Em seguida saíram juntas para cuidar de algo que eu não sabia o que era. Estavam animadas como se fosse a manhã de um grande dia. Talvez fosse. Já com a manhã avançada eu andava pela casa. Morávamos, eu, Raquel e os gatos, num apartamento amplo, num velho prédio. Velho mesmo. Janelas de madeira, abertas, por onde entrava o sol matinal de um inverno. O prédio tinha quatro grandes apartamentos com piso de madeira, um piso antigo, descuidado. Móveis antigos, esparsos pela casa. E gatos. Muitos gatos circulando por ali. De repente me dei conta que não havia telas nas janelas e que as portas, todas as portas, estavam abertas. Preocupei-me com nossos gatos, uma preocupação que não poderia existir no Eu do sonho; era uma preocupação que vinha de fora, do Eu que, quando acordado, morava num apartamento no terceiro andar. Preocupei-me, enfim, dos gatos terem acesso livre à rua. Procurei por eles e não os encontrei de imediato, até que vi Tesla, a pretinha, passando furtiva, como sempre. Olhei para a rua pela janela, o sol do inverno no meu rosto, e vi os outros gatos atravessando a rua e subindo em muros, passeando pelo mato baixo que se espalhava por ali. Algo naquilo tudo fazia sentido e acalmou minhas preocupações. A cozinha era enorme, de piso de cimento, mas tingido com aquele pigmento vermelho. Ficava num plano mais baixo que o resto do apartamento e dava para um grande quintal, porque nosso apartamento era térreo. Todo o terreno em volta do prédio era de terra, irregular, com um jardim aleatório, árvores de diversos tamanhos. Olhando aquele quintal, como que pela primeira vez, eu pensei que era ótimo para reunir os amigos. De repente Naymme e André, amigos no mundo fora desse sonho, apareceram, vindos do apartamento ao lado. Vinham nos visitar e éramos vizinhos. Pareciam alegres e começamos uma conversa que não recordo o teor. Havia a cordialidade que não me seria estranha e confirmava que era ali que morávamos, que éramos aquelas pessoas e tínhamos um quintal enorme. A moça que me acordou não apareceu mais. Raquel estava na cozinha comigo e parecia preparar algo, algum prato, café da manhã, talvez. Acordei, e já não era mais o sonho. Já não era mais Recife. Manhã de inverno em Vila Isabel, subúrbio do Rio de Janeiro. Astronauta, nosso outro gato, acordou também e foi até a cozinha, pedindo comida. Não havia quintal, somente o sol de inverno entrando pela janela e banhando Tesla, nossa gatinha preta. A AfetoContoLeituraLiteraturaMemóriaRecifeSonhosToinho Castro