Texto de Toinho Castro
Hoje vi uma live da Camilla Farias e lembrei desse texto, que foi publicado em 29 de fevereiro exclusivamente no nosso Instagram, por ocasião do lançamento do seu disco, Singeleza – Para o mundo colorir. A live deixou aquele gosto bom do trabalho da Camilla e resolvi postar o texto novamente, agora aqui no site da Revista. Nunca é pouco destacar o trabalho de gente talentosa como a Camilla!
— Toinho Castro, editor da Kuruma’tá!
Sempre que vou falar de uma coisa outra me vem à mente. Gosto disso. Gosto de ter outras ideias no juízo, uma puxando outra. Falar o que se pensa deveria ser como catar cajás maduros caído do pé na areia macia do quinta. Vem um, depois outros e todos estão ligados uns aos outros e a gente tem que demonstrar pra pessoas que aqueles cajás todos são do mesmo pé de cajá.
Falo tudo isso ao pensar no disco Singeleza – Para o mundo colorir, lançado nesse 2019 que nos deixou pela vibrante Camilla Farias. Pensei, desde que o escutei pela primeira vez, que deveria escrever algo sobre esse disco, destacá-lo, sua beleza de primeiro disco de paraibana de João Pessoa, dessa coisa que ele tem de um Brasil enorme, de um jeito de cantar que convida ao quintal, à reunião no terraço, enquanto alguém foi ali pegar a cerveja gelada pra nós.
E foi aí que pensei em outra coisa que demais me alegrou. Lembrei de um disco do baiano Raimundo Sodré, A massa, de 1980. Na contracapa do disco do baiano de Ipirá, tem uma foto que quando eu vi pela primeira vez, senti esse pulso da raiz da música brasileira. O cantor, sem camisa e com o violão em punho, anima a meninada sentada à sua volta no terreiro de uma casa simples. Ainda hoje olho essa foto arrepiado. Quando escutei Singeleza essa foto me veio como um raio.
Porque o que eu senti com o disco de Camilla foi esse terreiro, esse Brasil, a singeleza de se reunir para ouvir música, evocar os ancestrais, os ritmos e os ritos, né?! Tem essa canção, Barco de música, que ao ecoar nas caixas de som me deu vontade de ligar para uns três velhos amigos queridos, pra gente escutar juntos.
Vou dizer uma coisa aqui que é desnecessária, pois a intenção não é validar por aí a música de Camilla, mas ela é neta do mestre Vital Farias. E com isso quero dizer que ela traz essa ancestralidade nordestina, que tanta vezes e com tanta força define o Brasil. No seu disco delicado e potente ecoam essas vozes e versos. é um disco novo que já começa com uma longa história, porque como os cajás maduros apanhados do chão, ele tá conectado, com o chão, com o pé de onde caiu para colorir o mundo.
E aí, de repente, tá lá Elba Ramalho cantando no disco e a gente vê como as duas tem a ver, como as duas formam um dueto amalgamado e como uma deve a outra, porque passado e futuro se pagam tributos justos no presente. E isso é de grande beleza e de grande raridade… assim o disco se revela como uma joia.
Singeleza é um disco de amigos, de amizade. Sua trama musical é um tecido muito bem estendido ao sol. Nele a gente escuta aquele violão que dá gosto, uma percussão natural, que não se impõe mas que pontua o caminho de cada música com sabedoria antiga e dá aquela vontade danada de acompanhar com as mãos, com o passo. A alegria transborda a cada virada de faixa e que coisa boa é sentir em cada uma delas o aprendizado de uma cantora e compositora jovem, de mão cheia, que tá escrevendo sua própria história. A música brasileira está ali, como indescoberta, como território por desbravar
E pra completar minha alegria de exilado do Recife em terras de São Sebastião, o disco encerra com um frevo delicioso, que nesse carnaval de 2020 foi de alegrar a alma. Que coisa boa esse disco. Que coisa boa.
Deixo aqui, por fim, o convite para você escutar Singeleza – Para o mundo colorir, carregado pela voz de Camilla Farias e seu talento para a composição, que diriam uns que ela herdou, e que eu digo que ela simplesmente o tem, como algo mesmo que é dela, e que se alimenta desses rios caudalosos em que ela mata a sede. Aprendizado.
Escute também…
Apresentação da Camilla Farias, com participação especialíssima do compositor e violonista Fabrício da Rocha, no Teatro Violeta Arraes (que nome lindo para um teatro!), na Fundação Casa Grande, em Nova Olinda, lá no Ceará.
Publicado originalmente em abril de 2020, aqui na Revista Kuruma’tá, em parceria com o Programa na Ponta da Agulha, do querido Jorge Lz. Porque somos fãs da Camilla!