Texto de Diogo Simões
Estamos sós com tudo aquilo que amamos.1
Novalis, Fragmentos de Novalis (2000)
Do gosto pelas formas. Da dificuldade de trabalhar com “pessoas”, e, no entanto, estes corpos que são pessoas, essencialmente formas. Do feixe de luz reflexo no corpo vertical ondulando de um ponto a outro. Um plano. A indecisão perante o óbvio. Os movimentos sem aparente razão de ser, aliás, diz-nos, sem razão. Um ser errante no palco das atenções. Do espanto perante os que sabem dançar. Os bailarinos. Do esforço implícito nas mãos, no dorso. A tábua sob um dia de sol depois de uma chuva intensa. A indecisão, o momento interrupto de um a outro: a possibilidade de dança!
O que representa aquele corpo? Nós não sabemos em certa medida, como se nos escapasse, e ele ali permanece, sobre um início. A solidão de um corpo, ora que se mostra e esconde ao mesmo tempo. Levado de um estado a outro, sem esforço, apenas a passagem do tempo nele e em nós, espectadores. É um corpo que a cada momento retoma a forma inicial, que não é a mesma e se assemelha, é um corpo que é começo. Esta solidão não é indiferente, não é isolamento, talvez a possibilidade de início. Como se de uma marioneta atracada com fios longuíssimos impossibilitando a retidão dos movimentos. Qualquer movimento. Ou, diante da analogia, a relação que Bragança de Miranda faz do corpo e a suportabilidade da vida:
O «corpo» é uma marioneta porque é puxado pelo «fio da vida» que irrompe da carne. O que podemos é apenas jogar com esse fio, em busca das suas melhores figuras.2
Os movimentos então irregulares, imprecisos e quebrados, são o apelo à forma capaz de provar aquilo que ousa. E então o que é aqui provocado? O que é captado, aqui, onde o corpo é corpo entre outros e, por isso, é já condição de possibilidade do outro? Há algo breve nisto que é captado, porque, não é como se agarrássemos a punho forte a coisa que por essência não pode ser agarrada – não existe, e no entanto teve lugar e apareceu. Inapreensível que é aquele gesto que acontece de um movimento a outro. Porque, precisamente, não será tanto aquilo que depreendemos dos movimentos e depois a fórmula que nos surge límpida, como a coisa que tem lugar e é vista e sentida pelo corpo que se move entre corpos que o veem e o tornam um corpo estranho. Estranho, como se todos nós estivéssemos ali a perturbar a ordem das coisas, a ordem daquele corpo que surge. Daí o questionamento de Tânia Carvalho. «O que é isto? O que são estas coisas?»3 Que lugar estranho!
Captar será então essa aparição quase que sem forma, e, daí, o movimento desprovido de razão. O movimento que é, paradoxalmente, impasse e indecisão. Contudo, isto não impossibilita o movimento, pelo contrário, permite-o, é a sua condição. Jacques Derrida, incidindo sobre a possibilidade do poema, a mão que interrompe, espanta-se diante da indecisão de Hans-Georg Gadamer. Segundo o filósofo, parece haver aí uma suspensão na leitura, alguma coisa que nos impele a tardar pondo-nos alerta:
A indecisão mantém para sempre a atenção ao rubro, quer dizer, viva, acordada, vigilante, pronta para enveredar por um caminho completamente diferente.4
E é nesse momento, em estado de alerta, que se abre e nos abrimos ao movimento:
A indecisão é indecisa, e indecide. Dá o seu sopro à questão que, longe de paralisar, põe em movimento. A interrupção liberta mesmo esse movimento infinito.5
O impasse é a razão em defeito, como sugere Kant, é uma ameaça à ordem das coisas. Mas, precisamente, é a ordem das coisas que é aqui posta em questão. É o ser emotivo, o que sofre a dor da alteridade. Daí então o plano, as tonalidades balanceando entre o claro e o escuro. Um corpo.
- Novalis, Fragmentos de Novalis (Lisboa: Assírio & Alvim, 2000), 135.
- J. A. Bragança de Miranda, Corpo e imagem (Lisboa: Nova Veja, 2012), 131.
- Carvalho, Tânia – Captado Pela Intuição [Em linha]. Coimbra: Linha de Fuga, 2020. [Consult. 2020-10-05]. Disponível na Internet:<URL: https://www.linhadefuga.pt/eventos/captado-pela-intuicao?lang=pt
- Jacques Derrida, Carneiros. O diálogo ininterrupto: entre dois infinitos, o poema (Coimbra: Palimage, 2008), 27.
- Idem, 28.
Este texto integra a coletânea produzida pelo grupo Crítica de Fuga, que acompanha os trabalhos dos artistas e as atividades do Festival Internacional de Artes Performativas – Linha de Fuga.