A relva de Campina

Texto de Toinho Castro


Outro dia, tempos atrás, num mundo sem pandemia, Numa Ciro convidou a mim e minha companheira, Raquel, para assistirmos seu Cabaré Concreto. Isso foi o que? Uns três anos atrás, lá na Casa Rio, em Botafogo. O Cabaré Concreto em que Numa fazia releituras de canções, adaptava letras em temas instrumentais, provocava surpresa, emoção e nos cobria com o afeto de sua voz. Era uma espetáculo que fazia algo impossível de ser feito, resumir Numa Ciro. Na verdade, ao invés de resumir, prefiro condensar. O Cabaré Concreto condensava no espaço da Casa Rio, naquela pequena e aconchegante sala, as dimensões atemporais de Numa, que traz em si os futuros possíveis e os passados prováveis, os sertões e praias, o Nordeste intenso de sua Paraíba e o mundo em aberto. Como se toda matéria de que Numa se faz pudesse ser comprimida, condensada, na sua voz. Uma voz que parecia até sair da gente, de tão íntima e presente.

Foi lindo.

E ali estava as sementes do que viria a ser, num dos futuros possíveis, o disco que hoje Numa publicou, pelo selo Dubas, nas plataformas de streaming, um disco que só podia mesmo levar seu nome, NUMA, e seu rosto na capa, num belo trabalho do artista plástico, amigo e parceiro de Numa, Hildebrando de Castro. Uma capa impressionante, aliás. Dessas capas necessárias, intensas. Fico imaginando esse disco em vinil, ia ser um arraso. Quem sabe um futuro financiamento coletivo não realiza esse sonho?!

Voltando ao disco, o que Numa mais fez foi espalhar dessas sementes. Uma deles, sem dúvida, foi outro espetáculo, A Arte é Mulher, projeto da multi-instrumentista Lan Lanh, apresentado no CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil, do Rio de Janeiro, no ano passado, e movido pela força feminina e feminista de várias protagonistas como Heloísa Buarque de Holanda, Maíra Freitas, Jussara Silveira e muitas convidadas, além da própria Numa Ciro. Aquele palco foi uma forja, ali Numa cresceu ainda mais rumo a esse disco, que veio a ser carinhosamente produzido pela Lan Lanh. E cá estou aqui, depois de tatas histórias, a escutá-lo. Um disco múltiplo e sem medo, que brinca de ritmos e encontros, que marca belamente os 70 anos de Numa Ciro, completados nesse ano pandêmico de 2020.

O disco começa bom de começar, com Desproporção, e Numa cantando, a capella, o verso Quando eu era menina havia um rio enorme atrás da minha casa, que carrega a gente lá pro começo, pra Campina Grande, como um fiat lux que dispara a existência de um mundo. A partir desse princípio que parece solitário mas que carrega muitas gentes, o disco é só generosidade e festa, porque numa flagra o passado mas não vive de nostalgia. Numa é ousada, vibrante, é Dadaísta e arquiteta de parcerias inesperadas. O disco está cheio delas, com Luiz Gonzaga, Hermeto Paschoal, José Miguel Wisnik, Braulio Tavares, Tibor Fittel, César Lacerda, Socorro Lira, Claude Burg, Tania Christal, Flaviola e Lan Lanh, que assina com Numa as deliciosas Psicodélica, primeiro single do álbum, e A Arte é Mulher, que namora com o funk carioca e vem lá do espetáculo do CCBB. Tem o sabor e a leveza dos bailes em Do esperar, parceria com João Donato, que leva a participação de Rodrigo Faria e Donatinho! O Baile está divertido! E está mesmo! E agora, preste atenção no detalhe… Vigésima hora é uma música sensacional em parceria, e com participação, de Tania Christal! Estou louca, estou louca, canta Numa, e é essa loucura que vai mandando o disco pra frente, e a gente com ele, admirados da versatilidade dessa artista, que sabe do seu lugar preciso entre os ritmos e as melodias. E aí se encaixa A Arte é Mulher, pra passar o bastão para um xote irresistível, pra arrastar as cadeiras do salão e dançar até amanhecer. Xote à primeira vista é parceria com Tibor Fittel , e quando acaba só não deixa saudade porque na sequência vem nada mais, nada menos, que a parceria com Hermeto Paschoal, iluminado o terreiro com Novena, tema instrumental que ganhou poesia de Numa e virou, no disco, A feira grande de Campina Grande! Não bastasse, tem a participação das vozes de Jussara SIlveira e Tadeu Mathias, além da condução preciosa de Itiberê Zwarg. A cada faixa o disco faz mais e mais sentido, seu compromisso com o legado brasileiro e com esse olhar pro horizonte. Horizonte de país que tem na música se recanto e seu conforto. O nome disso é aula.

Quero falar assim um pouquinho de cada música, que vou escutando enquanto escrevo, indo e voltando, pra dar conta do caráter de partilha que esse trabalho tem. Coisa de amigos que se encontram, que se reconhecem no que são e no que fazem. Daí volta Jussara Silveira, dividindo com Numa Rua da saudade, parceria com José Miguel Wisnik, um fado lindo que ganhou um poema comovente de Numa. Que vontade de sentar na calçada dessa rua, num fim de tarde, a ouvir na distância essas duas vozes, mediadas por essas feras que são Armandinho e José Miguel Wisnik, dando um banho de talento e nos transportando para as casas de muro baixo, com o jasmim noturno.

E como se trata de Numa Ciro, na esquina da Rua da Saudade a gente encontra o Cabaret Voltaire, em Dada Isso, parceria com Claude Burg. É aí que a gente pensa na pluralidade de Numa e do seu trabalho, do quanto ela está mergulhada no redemoinhos da poesia de ruptura, do verso que desafia. Numa é, essencialmente uma poeta. Da voz, do corpo… chegue junto de Numa que você sente o ar se mexendo ao seu redor. Numa altera a gravidade de onde está. Em 2018, nos juntamos eu, Aderaldo Luciano, Braulio Tavares, Otto e Nonato Gurgel e Numa para lançar um livro de poema, o Lendário Livro. A poesia de Numa naquele livro é um entrecorte, um canion, que nos obriga a olhar pra dentro dele, vertiginoso.

Os quatro elementos na beira do mar é um encontro com Recife, via o grande Flaviola. Numa, o disco, é essa viagem de tirar o fôlego por um Brasil que capta o mundo. Flaviola é raro, referência poderosa, e o resultado desse encontro nos comove, carregado de mitologias poéticas. Parece que a gente escuta com os pés nas águas da praia de Boa Viagem, olhando os arrecifes. Tô aqui ouvindo de novo e de novo. Que bonito! E depois a gente se aprofunda com uma valsa do mestre Luiz Gonzaga, de 1941, chamada Numa serenata, que Numa pegou e pôs letra, levando a gente a se debruçar na janela pra olhar a rua, talvez a mesma Rua da Saudade, onde dançam os casais no chão de terra batida. Lembro da minha mãe, que ama valsa e me ensinou a amar a música e a poesia.

O disco vai chegando ao fim com uma resposta de Numa ao poeta, também de Campina Grande, nascido no mesmo ano que ela, Braulio Tavares. Meu nome é Numa Ciro, poema musicado pela paraibana Socorro Lira, é uma resposta de mulher ao Meu nome é Trupizupe, de Braulio, poema publicado no seu livro Sai do meio que lá vem o filósofo! Resposta em martelo agalopado, caprichado no bom humor e na ironia, desafiando a tradição masculina da cantoria. Uma beleza!

Meu nome é Numa Ciro
Sou a relva da Campina
Meu nome é Numa Ciro
A providência divina

E pra fechar esse disco, Numa segue na conversa com Braulio, com a sua versão, primeira gravação, do poema A hipótese do Hipopótamo Tartamudo (Uma balada comportamental), que o poeta publicou no seu folheto de 1981, Cabeça elétrica, coração acústico. Recordo agora Numa recitando esse poema para uma plateia de jovens encantados, junto com Braulio, no Centro de Artes da Maré. Que poder! Acompanhei Numa enquanto ela preparava esse disco, e sua especial animação com a gravação dessa música. Acho que é lindo encerra o disco com essa amizade, essa encontro bom de dois amigos que nasceram no mesmo ano, na mesma Campina Grande, que os gerou pro mundo com essa eletricidade da criação. E aos dois hoje com 70 anos, na mesma Rio de Janeiro, trocando ideias, trocando versos e festejando a riqueza artística das nossas gentes. Veja que Numa chega ao primeiro disco nesse ano de 2020, esse ano estranho, difícil demais. Então é um disco que nos chega redentor de muita coisa, em pleno novembro. Como a cada dia somos mais bombardeados com notícias ruins, tristes, com a devastação e o abandono da Covid, e de repente Numa Ciro nos resgata numa jornada que começa quando ela era menina, sem noção das proporções do mundo, mas intuindo que essas proporções a gente constrói, distorce ou se eleva acima delas pra ter uma visão mais clara das coisas. Essa plataforma em que Numa se ergue é a arte, a Arte Mulher, a arte que engendra o mundo e bota ele pra girar, pra dançar, pra amar.

E sim, esse disco é um disco de amor.

Vocês me perdoem mas esse texto foi escrito de uma tirada só, escutando e escutando essas canções, enternecido, em plena madrugada. Pode, pois conter erros, ausências, idiossincrasias. Assumo. Mas quis reagir logo à beleza desse disco. Digo isso e já lembro que Jorge Luis Borges, no prólogo de um de seus livros escreveu algo como “espero que vocês encontrem aqui algo mais que a Beleza. A beleza, nesse mundo, é comum”. NUMA, certamente, nos carrega para além da beleza e nos oferta encontros, reencontros, surpresas e encantos. E vozes que são nossas vozes, nesse redemoinho do mundo.