Texto de Aderaldo Luciano
Numa Ciro é a flecha atravessando o sertão do cariri, remoendo as águas do Açude Velho de Campina Grande, desobedecendo as curvas e atalhos recifenses, caindo nua-lúcida-luminosa numa reunião ordinária da Academia Brasileira de Letras. O mofo acadêmico não suportará sua carga. A poeira da velhacaria desaparecerá em desabalada carreira frente seu sopro criador. A ela, eu, o Cego Aderaldo, devo a visão do mar revolto, a espuma se chocando em meus dedos entrevados, curando-os da artrite, trazendo certa instabilidade, recebendo alguma transcendência.
Um dia, quando cheguei da Paraíba, com o cós da calça elevado acima do umbigo, quase no pé do pescoço, ansioso por uma vaga no mestrado em Poética da UFRJ, no Fundão, esbarrei com essa mulher chamada Numa Ciro. Formaríamos um trio de possibilidades, nos anos seguintes: Nonato Gurgel (saudade!), ela e eu. Meu sonho era inscrever-me na mala da intelectualidade local, os autores dos livros que não li na graduação, mas que formavam a cabeça dos cabeças de onde eu provinha. Foi ela quem preparou-me uma armadilha e me disse com autoridade e divinação: você vai estudar cordel, seu cabra!
Na sala de sua casa em Santa Teresa, a pintura colossal de Hildebrando olhando para nós, a própria Numa retratada, agora estampando esse disco maravilhoso, ela cantou-nos sua trilha sonora, seu alto mundo lírico, sua ordem performática. Tanta energia, tanta vida, tanta urgência, tanta lira, tanta voz, tanto coração, tanta fera. Esse álbum, Numa, agora nas prateleiras digitais do mundo é muito, muito, muito. Mais. É uma cascata de Vida. Dentro dele vem o fora dele. Nele vem a Origem. O origami e o astro. Pois que começa com a frase da memória: quando eu era menina!
Este seria um texto de observação sobre o produto musical, encontro nada acidental com Lan Lanh, produtora e linha sequencial da obra, mas, pela paixão, admiração, cumplicidade que nos une, transforma-se em linguagem do meu próprio agradecimento. Agradeço a Numa por nos oferecer esse trabalho. É a força que ela nos empresta. É a oportunidade para nossos ouvidos, para nossos corpos, para o que há além do nosso cérebro, inclusive a lágrima e a celebração. O álbum Numa é um girassol para nós. Para mim é a encarnação da Flor. É meu Socorro quando levanto os olhos para as montanhas.