Texto de Toinho Castro
Há tempos que tô pra falar desse disco. Quando um disco assim é lançado a gente fica doido pra comentar algo imediatamente, mas tá difícil dar conta das vontades com os nós cegos que a falta de tempo anda dando na gente, né?! É o corre-corre das mensagens no zap, das redes, das demandas do trabalho, das urgências sabe-se lá de quê! Correr pra onde? Correr de quem?! Na falta de uma resposta decente…, corra pro disco da Luna Vitrolira.
Tô atrasado nesse conselho e talvez você já esteja lá, grudado nas faixas de Aquenda – O amor às vezes é isso. E aí você já sabe do que tô falando, da coisa poderosa que é esse disco, e da experiência humana que é escutá-lo. Sendo humanos, nosotros, que outra experiência poderia ser?! Pois falo da experiência humaníssima de escutar a outra voz, que não a sua própria voz, ou dos seus. E o que carrega essa voz.
Conheci Luna tempos atrás, no Recife, por conta de um trabalho em comum. Nos encontramos no numa cafeteria no Recife, no Cais do Imperador. Veja só, século 21 e a gente se encontrando, em pleno Brasil república, no Cais do Imperador. Ter um cais no Recife assim batizado, diz tanto da importância de se debruçar sobre o trabalho de Luna, tanto poético, quanto musical, ainda que a separação entre essas duas coisas seja ilusória, dentre tantas coisas ilusórias que aceitamos confortavelmente. E daí o sangue que esse país ver escorrer diariamente.
Levantar adjetivos sobre o trabalho de Luna é falar bobagens, é outra saída fácil. A poesia de Luna é um chamado, não só pela sua escuta, mas também para que você, ou eu, ou quem quer que seja, não mais se cale diante de tudo que a gente cala. Trem carregado de coisas coisas amargas, mas com um amor subjacente que alinhava a luta. Lutar contra o ódio, o machismo inerente à história mundial, contra o racismo, a violência que arrasta mulheres, e tantas outras pessoas fora do esquemão homem-branco-hétero, à morte, ao medo. Lutar contra tudo isso é ato de amor. Amor, às vezes, é isso.
Há algo forte de esperança na poesia de Luna e sua música. Algo que é a própria existência dessa poesia e dessa poeta, dessa coisa caudalosa, da qual não se pode ficar à margem, admirando… que ninguém precisa disso. Você, hoje, poder abrir um livro publicado por Luna, ou ouvir seu disco nas tais plataformas, é uma afirmação de esperança em ventos outros. De tempos outros, que virão. Tempos que esse trem, do qual falei antes, também vem carregado.
Musicalmente o disco arrasa. É coisa nova, fresca, vibra na frequência precisa. Eletrônica ancestral de múltiplas influências e fluências. Não enquadre! Não parece com esse ou aquele. Na base está o ritmo de Luna, métrica livre que dita o rumo dos sons. Imagino essa cena, Luna caminhando, avançando no seu gesticular, e à sua volta esse redemoinho sonoro, a erguê-la, artista, negra, mulher, senhora da palavra. É disco de poeta? De novo, defina não! É pra escutar. É pra dançar, é pra ser uma coisa boa. Ajoelha e reza, amizade!
Eu queria muito um LP bonitão desse disco, porque nele tudo é muito físico. É o corpo no comando, com sua vivência, de sofrimento, gozo, memória física da história do Brasil, das travessias, desembarques, grilhões, trens lotados, fábricas extenuantes. Corpo que apanha, que dói, que foge e mas que se acolhe em si mesmo, se resgata na dança, no rito. Lembro de ter visto uma apresentação poética da Luna, lá no Teatro Hermílio Borba Filho, no Recife. E de como ela ocupa o espaço com tamanha beleza e verdade. A poeta.
Mas ela não é a poeta que fez um disco. É a artista, que navega do livro pro disco, pro filme Sim! tem o filme Aquenda!); da fala recitativa pro canto, que é fala também; do canto pra coreografia do corpo que tem que se virar no labirinto do país racista, machista e violento. Diferente do livro, o disco é produto de muitas sensibilidades. Sim, o livro também pode ser, a seu modo, mas o disco tem essa natureza mais diversa de contribuições e o disco de Luna é rico nesse sentido, com grandes contribuições, como a produção e arranjos e piano do gigante Amaro Freitas, e gente linda do quilate de Pupillo, Lirinha, Lucas dos Prazeres, Hugo Medeiros, Junior Cabral, Xênia França e as poetas Roberta Estrela D’Alva, Mel Duarte, Cristal, Tatiana Nascimento, Bell Puã e Bione. Constelações nessa noite que paira sobre o país. Guias.
Luna Vitrolira, com seu trabalho potente, abre passagem e deixa rastro. Não fiquemos alheios ao talento e à dignidade dessa poeta.
PS. Batizo agora o Cais onde a conheci, o Cais do Imperador, como Cais de Luna! Chega de imperadores.
Sim, tem mais! É o filme Aquenda – O amor às vezes é isso, que completa essa odisseia incrível dessa artista corajosa. Eu disse completa?! Acho que é mais expande, transcende. Mais que um trabalho completo, encerrado, a poesia de Luna é porta aberta e convite. Leia o livro (Atenção! Ela também participa da antologia 29 poetas hoje, organizada pela Heloisa Buarque de Hollanda!), escute o disco e veja o filme!
O curta-metragem “Aquenda – o amor às vezes é isso”, cuja trilha sonora são 7 faixas do disco e 1 faixa inédita (águas espessas), integra literatura, música, performance e cinema. O filme dirigido por Gi Vatroi e Aida Polimeni aborda o trajeto de cura, libertação e retorno de Luna Vitrolira para o encontro com sua ancestralidade, através de rituais de cura, da ressignificação da ideia romântica de amor e da cosmificação do espírito. A narrativa se passa em um engenho situado numa região canavieira em Pernambuco, para onde a personagem volta em busca do entendimento de suas origens, identidade e memória, conduzida pelo desejo de reconstruir a sua própria história.
“A idealização do filme surgiu a partir do desejo de um conteúdo de impacto visual que representasse a potência do disco, trazendo junto a narrativa do trabalho, com o objetivo de convidar o público a acompanhar a personagem em seu trajeto de busca por sua memória ancestral, a partir do amor enquanto mote para dizer sobre a nossa liberdade. Nesse contexto, o engenho representa um território de poder, domínio, submissão e apagamento, aspectos que caracterizam o projeto político colonial do ocidente e repercutem, há séculos, em diversas camadas da estrutura de nossa sociedade, inclusive em formas disfuncionais e violentas de cativar, estabelecer vínculos e compreender afetos, o que acontece, geralmente, a partir da reprodução da ideia de posse e opressão, quando o tema é “amor”.
— Texto original da postagem do filme no YouTube.