Conversação de paz, para além do tributo (merecido) a Sérgio Ricardo

Texto de Toinho Castro


Destaque para a bela colagem da capa, da artista Jhê

Mais um discaço chegando antes que o ano acabe, antes que o mundo acabe… pois quem sabe assim ele não acabe.

Conversação de paz (Tuhu Music, 2021), de João Gurgel, é sensacional. Um disco enxuto, com sete faixas, todas assinadas pelo grande, grande, Sérgio Ricardo, de quem João é filho e a quem o disco é um belíssimo tributo. Perdemos Sérgio Ricardo no ano passado, mas sua criatividade irrequieta, seu talento múltiplo e sem medo, afirma-se cada vez mais em sua qualidade. A gente ainda vai ver o Brasil prestando a devida homenagem a esse artista incrível. E não tem homenagem melhor que ouvir e gravar sua obra.

Dito isto…

João Gurgel alinha aqui um repertório muito esperto, escapando do óbvio, pinçado com precisão no trabalho de SR. Conversação de paz, a música, do disco Arrebentatação, de 1971, abre o disco com uma contemporaneidade fora de série, marca da poesia e das composições de Sérgio Ricardo, e que percorre todo esse disco. Estamos nesse mundo em guerra, nesse país em que se faz necessária, urgente, uma conversação de paz. Bom demais ouvir a ironia misturada com doçura, do que poderia ser uma conversa em frente a televisão ou no botequim.

Ana Ana Onu
Está me dando sono
Acordar o dono
O dono do sono
O dono do abandono
O dono do Esporte Clube das Nações
O dono do ar que eu respiro
Respiro pra te amar

E na sequência vem, pra mim, a grande alegria e surpresa do disco, o resgate de Emília, música tema da boneca de pano que bagunçava as coisas e as ideias, na edição clássica da série do Sítio do Picapau Amarelo, nos anos 1970. Não tenho notícia dessa música que não seja no disco com a trilha do seriado, lançado em 1977. Então trazê-la a tona, com esse arranjo lindo, é um presente pra gente que nem eu, que conheceu Sérgio Ricardo com essa canção assombrosa (Possivelmente minha preferida ainda hoje).

Nesse link comento Emília em meio a outras histórias
sobre Sérgio Ricardo.

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A presença de Cacumbú no álbum, recém gravada pela irmã, Marina Lutfi, no seu álbum Outra dimensão, faz com que a gente tenha nesse ano de 2021 duas versões impecáveis dessa música. São duas leituras distintas, mas ambas com algo de assombroso, algo de soturno nessa crítica dilacerada, cortante, aguda, Caco de faca velha bico de urubu. Trata-se dos mares, das marés. Dos oceanos e dos peixes fugidios, do óleo derramado, mas também de nós, procurando ar pra respirar no meio em que vivemos, afogados na nossa própria natureza, recortados da vida, recortados com ponta de faca da tecitura das águas. Boiando inocentes.

Onde os saveiros onde as caravelas
Onde estão minhas jangadas
Onde o barco a vela

Gente, que música é essa. O arranjo de João é soturno, misterioso, história contada ao pé do ouvido, pra que ninguém desconfie que estamos tramando, ou que sabemos do que está acontecendo nesse mar que prolifera. Ter duas versões límpidas dessa música num ano que nos arrasou, é um alento.

Apesar desse texto parecer um faixa a faixa, não tenho nem cacife pra discorrer sobre a obra complexa e ousado de Sérgio Ricardo. Vou falando de apaixonado que sou, agradecido demais pelo generosidade desse disco, de João, que ainda nos oferece Bate Palma e Folha de papel, que acabei de conhecer com ele. Bichos da noite, sobre poema do pernambucano Joaquim Cardozo (Da peça O coronel de Macambira, começa com uns sopros, que vou te contar. Um clima de fuga aventurosa, de jornada escondida, pois São muitas horas da noite, são horas do bacurau... Estamos, pois, enfiados na mata noturna, testemunhando a dança dos bichos da noite. Comparada à original, é uma construção surpreendente, altamente cinematográfica. Afinal, o cinema tá impresso no DNA profundo de tudo que Sérgio Ricardo fez. Eu mesmo tenho com essa música uma história de beleza, de cinema, que fez com que ela entrasse na trilha de Bacurau, de Kleber Mendonça Filho. Mas isso é outra história. Vale ressaltar no registro de João, a voz luminosa de suas irmãs, Marina e Adriana Lutfi, num contraponto à escuridão em que a música nos conduz e nos perde. Lindo.

Lá vem a pedra fecha do disco, do disco Do lago a cachoeira, de 1979. Brilha a estrela em noite de orixás!

Conversação de paz é um testemunho instigante da riqueza da obra de Sérgio Ricardo. Confirma a absoluta necessidade de ouvir suas músicas, no Brasil de Hoje e de amanhã. É um trabalho político, de resistência, afetivo, lírico, bem humorado, cheio de ironia. Uma música sem tempo, que ocupa muitos espaços nos caminhos da música brasileira.

Mas é preciso que se diga…

Mais que um tributo (merecido) a Sérgio Ricardo, é um disco de João Gurgel, artista múltiplo e talentoso, que imprime às canções sua própria identidade. Arrisco-me a dizer que, entranhado na obra do pai, ele constituiu um disco autoral. A seleção do repertório, os arranjos, as participações, tudo tão acertado, tão preciso… É o primeiro disco de João, e primeiros discos que tem assim essa luminosidade, são tão necessários, tão renovadores da nossa fé na música. Nada como a alegria de ouvir um disco novo, fresco, cheio de vida e estradas abertas como esse Conversação de paz, que nos chega no apagar das luzes de um ano muito difícil, quase impossível. Chega como potência, promessa de horizontes abertos.

3 comentários

  1. Poxa, Toninho! Assim eu fico sem graça! Rsrs muito obrigado querido! Fico muito feliz que tenha recebido dessa forma, meu carinho em forma sonora! Fico muito feliz também, que tenha percebido tanta coisa bonita! Afinal, a beleza está nos olhos de quem vê! Muito obrigado por essa matéria linda, e pelo carinho e admiração que você tem por meu pai e sua obra! Viva Sérgio Ricardo! ❤️

    1. Grande abraço, João! Vi agora seu comentário aqui na revista! Esse disco é uma bela celebração de muitas coisas. Da obra do seu pai, do sua própria obra como artista, e desses ventos que parecem prometer dias melhores.

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