Texto de Toinho Castro —
A palavra Potengi significa Rio de Camarão. É também o nome do rio que corta a cidade de Natal, onde nasci e onde estou agora, passando uns dias para visitar minha mãe. Potengi, uma palavra, sonora, deliciosa de se falar, legado sinuoso do indígenas, habitantes primordiais dessas terras varridas pelo vento que não cessa, esquina do continente que é. Potengi.
Nasci aqui, na Maternidade Escola Januário Cicco, um prédio que sempre procuro visitar quando por aqui apareço. Visitar que eu digo é passar na frente, de carro, e observá-lo. Deveria, qualquer dia desses, entrar. Quem sabe na próxima segunda. Aqui nasci, mas aqui pouco vivi. Cresci no Recife, com seus canais, pontes. Com o Capibaribe e o Beberibe alimentando o Atlântico. Com os arrecife, rentes à costa, nos protegendo sabe-se lá de que misterioso perigo. De lá saí somente aos trinta anos de idade, para o Rio de Janeiro, onde vivo há vinte e cinco anos. Faça as contas. De nostalgia do Recife, no meio dessa pandemia, escrevi até um livro. Que Natal tenha uma mágoa comigo, da falta de uma palavra de carinho em tudo que escrevo, não seria de estranhar. Reservei Natal para a minha mãe, que contou suas e histórias de infância e juventude num filme que fizemos juntos.
Ao longo da infância fiz de Natal meu quintal de férias. E digo quintal na acepção lúdica da palavra, lugar de mundos e fantasias, de chão de folhas e frutas machucadas da queda e dos pequenos bichos a assustar e encantar. Natal como terreiro noturno, rua erma e assombrada, que eu percorria ao lado dos primos que eram como irmãos. Mas sempre voltava para o Recife do mangue, da água salobra da ameaça de enchentes, de onde minha mãe olhava para as bandas de Natal, como quem busca um farol que acuse um porto.
Criança do Recife e suas prendes e segredos, cresci sem sentir-me natalense. Depois de adulto a perambular pelo mundo, pude elaborar essa ascendência.
Potengi é parente de Potiguar. Outra palavra folgosa que os mesmos povos gravaram na nossa língua. Comedor de Camarão, é o que significa, e é como chamam aqueles que nasceram nesse território, o Rio Grande do Norte. E é nela que me sei de onde vim, comedor de camarão que sou. Pois não é que o que comemos é o que nos define?
Hoje retorno a Natal e quis, pois, alinhar essas palavras de reconciliação com a origem, a fonte que vai minando água, nascente de rio que é, desde longe. Desde antes de mim. Aqui brinquei nas minhas férias, aqui brincaram os meus. Meu bisavô, Pai Miguel, senhor de casas e filhos, minha avó Mariola, que se foi quando eu morava no Rio de Janeiro. Por conta disso, até hoje sua morte é uma irrealidade, um desacontecimento. Ainda penso que posso visitá-la no Alecrim.
De carro, entre um compromisso e outro na cidade, passo na fábrica de doces abandonada da Sams, de onde emanava um cheiro adocicado que até hoje eu sinto. A rua Miguel Castro, o Minipreço (Hoje uma “Igreja”), onde comprei meu primeiro disco, um compacto do Kraftwerk, com Spacelab de um lado, e The model do outro. As tardes de música e aventura, as caixas d’água, enormes, da CAERN, como algo deixado ali por extraterrestres. Natal que eu e meus primos exploramos e mapeamos com o coração. O mar em que nadamos e de onde saímos salgados (Por favor, leia essa crônica de Clarice Lispector sobre o banho de mar), e o Morro do Careca, no fim de Ponta Negra, com seu topo proibido e inatingível como um Everest de areia (Hoje em dia é, de fato, proibido subi-lo), e o vento sem dó a nos revirar os cabelos e os pensamentos e as dunas.
Todas essas visões resistem, sob as muitas camadas de Natal que se sobrepuseram, ao longo dos anos, sobre essa Natal que vivi como um encantado. Como resistem em mim, sob as lâminas dos dias e noites que se sucederam. Uma visita assim é como olhar a cidade com olhos de raio X e, ao mesmo tempo, ser dissecado até esse íntimo em que a gente nela se reconhece.
Quando menina minha mãe via com, com sua mãe, o pôr do sol no rio Potengi. Herdei dela esse pôr do sol e essa palavra, Potengi. Vim aqui tomar posse desse amor. Vim aqui comer camarão.
Cara me senti em Natal, lugar em q todo ano ia de férias na infancia. Sou um intruso, mas me sinto um pouco de lá tb, senti ate o cheiro daquelas terras. Parabéns Toinho !
Oni, meu irmão! Que beleza!
Temos muitas sintonias nessa amizade!
Obrigado pelo comentário.