Acarajé da Gal

Texto de Toinho Castro


Ontem, depois de encontrar com o amigo e poeta Edmilson Santini no Largo da Carioca, dei de cara com a barraca da baiana e parei para um ansiado acarajé. Desde o afrouxamento das medidas de isolamento que eu passava por ali e não via a baiana e já achava que sua barraca havia sucumbido, como tantas outras inciativas maravilhosas, ao rigor da pandemia. Mas eis que me enganei, para felicidade geral de quem frequenta ali a região. E eu estava doido por um acarajé há dias, então foi uma coração de um reencontro e o sortilégio de um desejo realizado. Alegria que só mesmo um bom acarajé pode proporcionar.

Ocupei um mesinha de madeira, daquelas de boteco, com meu acarajé e uma Coca-Cola e pensei em Gal Costa, que a gente havia perdido no dia anterior. Ah, pensei na Bahia, na minha amiga Nara, que certa vez visitei em Salvador, depois de comer um acarajé no Rio Vermelho.

Você sabia que tem a capa de um disco do Luiz Gonzaga que foi fotografada ali, juntinho do edifício Avenida Central? E vocês sabiam que Gal gravou um versão absolutamente bela de Acauã? E que ali, quando era somente um buraco da construção do Metrô, foi cenário para o filme A queda, do Ruy Guerra?! Tantos Brasis a sorrir dentro de mim*, enquanto eu comia um acarajé e pensava na Gal cantarolando Baby.

Você precisa saber de mim…

Esse negócio de autoria, pensava eu saboreando a pimenta, é uma coisa muito louca. Dizer que Gal era intérprete, pensava eu deleitado de dendê, é saber tão pouco sobre o que é compor uma música. Gal era uma compositora, uma criadora de universos com sua voz. Você pega Vapor barato, gravada no disco Fa-tal, e pra mim Gal é coautora. Porque o conceito jurídico, sei lá, de autoria não me interessa de jeito nenhum.

Gente, acarajé faz a gente pensar. Tava um sol lindo no Rio, depois de dias de chuva e essa friagem carioca de 19º. enumerei de cabeça os clássicos definitivos alinhavados por Gal ao longo dos anos, de décadas. E são tantos…. Eu e meu amigo Jorge LZ preparamos um programa na Rádio Graviola em homenagem a Gal. Que coisa mais impossível selecionar as canções. Por mais que a gente escolhia, mais ficava de fora. Pensei que o programa poderia continuar, iria continuar por conta dos ouvintes, que correrias para seus CDs, vinis ou plataformas para preencher as tantas, imensas lacunas, do nosso modesto programa de rádio, tão menor que Gal.

Escutava no meu fone de ouvido, enquanto desfiava o acarajé, com o camarão seco desafiando a gravidade, a gravação de Mãe, de Caetano. Pra mim (escolha a sua) a melhor canção gravado por Gal. A mais bela. E minha própria mãe tão longe do Largo da Carioca, lá na rua dos Tamoios, em Natal, no Rio Grande do Norte… Vixe, que vontade de chorar me deu. Guitarras, salas, vento, chão / Que dor no coração. Desculpa, Caetano, mas essa música é da Gal. Essa música é minha toda vez que a escuto. Eu a recrio ao sabor da voz de Gal a cada audição. Nova e inédita toda vez que toca no rádio da minha consciência.

Toda música é um ponto luminoso onde tanta gente se encontra.

Gal era uma espécie, pois, de Quatro Cantos de Olinda. Nela desaguavam Caetano, Caymmi, Luiz Gonzaga. Cada rua de Salvador dava nela; onda quebrando em praia, moça de saia rendada dançando no terreiro. A luz do sol, o barulho do vento… Tudo permeado pela voz de Gal, tudo apontando o rumo dela. Porque Gal Costa era a maior cantora brasileira. A voz de uma geração atrás da outra. Voz que, graças a invenção do fonógrafo, vai continuar a alimentar esse rio caudaloso de pessoas que precisam de uma bela canção no fim de um dia difícil, ou de um dia divino, maravilhoso.

Sabe, vejo muita gente associando voz a instrumento musical. A voz de fulano é seu instrumento musical, como se isso agregasse valor à voz. Vejo distintamente… a voz de Gal era sua pessoa. Voz é gente, não é instrumento. Uma projeção do ser no ar. Por isso quem ressoava ali comigo, enquanto eu caminhava pelo sol do Largo da Carioca com o sabor/saber do acarajé resistindo na boca, era a própria Gal, desmentindo sua morte. Somos eternos, pensei. Talvez fosse o acarajé agindo sobre meus pensamentos. Que fosse então. Melhor assim. Melhor pensar que somos eternos, que perduramos, que persistimos. Numa voz, numa memória, numa foto. Lembrei da foto da capa do disco Domingo, que ela gravou com Caetano. Ela e ele num frame, preto e branco, num dia de sol. Fiquei comovido

Queria que aquele acarajé durasse uma eternidade. Sabor alegre da Bahia, sol no Largo da Carioca, Gal Costa na cabeça. Pensamentos vários, entrelaçados, vívidos, sobre as pessoas, a cultura, a história da nossa gente. Sobre mim mesmo e aquele que, pra mim, é agora o Acarajé da Gal.

*parafraseando o último verso do poema Loucura, de Florbela Espanca: Tantas almas a rir dentro da minha.