Quatro mulheres e o cordel

Texto de Aderaldo Luciano

O cordel, desde junho de 2020, observou uma mudança radical em seu território. Naquele mês, por conta de um malfadado incidente, caso que revelou para o Brasil todo o arsenal machista, misógino, patriarcal, nasceria o Movimento do Cordel Sem Machismo. Coletivos se articularam, cordelarias surgiram, as mulheres escreveram com sua dor a marca revolucionária da poesia. São Paulo conseguiu, com seus diversos coletivos, plantar a bandeira mais alta no sudeste. A seguir, quatro mulheres fazendo o cordel na pauliceia, sem desvarios.

Maria Clara Psoa: Com a fauna em extinção, ariranha pede socorro.

Não é possível distinguir, ou sequestrar, a letra, a palavra política, do fazer poético quando se tem diante dos olhos, pertinho do ouvido, grudada ao corpo a obra ativista. Mas é possível identificar as fronteiras. Maria Clara Psoa ecoa o lar em que nasceu e se construiu pessoa e cidadã. Seus pais, Nando e Rosi, percorreram longas intempéries nos movimentos sindicais, nas bandeiras vermelhas da esquerda propositiva. Além do lastro político, herdou as sendas cordelísticas do pai. E, agora, segura os ventos dos folhetos.

Na Festa Literária Internacional de Paraty, na Casa do Cordel, lançou o poema Com a Fauna em Extinção, Ariranha Pede Socorro. Com ele, impresso em 18 páginas, se assenhora do ofício de cordelista. Preferindo as setilhas (ou septilhas, como deixa claro na ficha técnica), utiliza suas goivas e cinzéis para abrir delicadas glebas onde deita, com cuidado e zelo, rima, métrica, ritmo e matéria. Essa matéria, a tela escrita do cordel, é cavilosa, já anunciávamos. A cavilação cordelial requer mesmo o conhecimento e a compreensão de seus desígnios.

Maria Clara Psoa iniciou o percurso aos 15 anos. Acostumou-se a ouvir os versos dos mais velhos, a observar a arquitetura dos fundadores, a perceber os mundéus da profissão de poeta. Com os olhos mais abertos mirou num determinado ponto e sobreveio-lhe uma certeza: havia poucas mulheres no mundo do cordel. Ouviu o chamado e entregou-se aos coletivos, erguendo a voz feminista, reivindicando o quinhão subtraído desde muito tempo. Encontrou, nas Teodoras do Cordel, o megafone.

A produção desse folheto é, mais uma vez, a reunião do braço e do espírito das mulheres cordelísticas. Quando se fala em mulheres no cordel, saliente-se sua atuação como editoras (no caso a Cordelaria Castro, de Petrolina), xilogravadoras (aqui, Kelmara Castro), diagramação (com projeto de capa de Graciele Castro) e inscrição no coletivo das Teodoras, grupo de mulheres “artivistas” do cordel em São Paulo. Maria Clara Psoa está caminhando. Todo o caminho é de aprendizado e experimentação.

Maria Clara Psoa

Lu Vieira: Militante da arte

Aos poucos, com suas invenções, intervenções e escrita, Lu Vieira assumiu a vanguarda do cordel paulistano. Escreve, pinta, borda, brinca, canta e se diverte nas sextilhas do gênero poético. Vinda da região que o Brasil resolveu chamar de Nordeste, atropelando suas diferenças e particularidades, assuntou-se em uma especialização em Língua Portuguesa na PUC-SP, estudando as peculiaridades do texto cordelístico, formou coletivos, dialogou com poetas e editores, encontrou um caminho extenso em sua frente e nele fincou os pés, aproximou-lhe as mãos, concedeu-lhe a cabeça.

Fundadora do primeiro clube de leitura de cordel do mundo, ofereceu à Casa de Mario de Andrade a oportunidade de ser instituição pioneira nessa senda. Há aproximados dois anos desenvolve a estratégia de convidar autoras e autores para sessões de leitura e debate de suas obras. Na pandemia, abriu a porta digital para a participação de poetas e leitores de todo o Brasil. Ainda não satisfeita assumiu um lugar decisivo no coletivo Teodoras do Cordel, grupo de mulheres criadoras, criativas, agentes de leitura e de prática teatral, revolucionárias na estrada cordeliana.

Lu Vieira é uma máquina de invenções ético-estéticas. Com seu canal Ler Mulher, no Instagram, tem articulado o diálogo entre a literatura de traço feminino e feminista e leitoras e leitores dispostas e dispostos a fortalecer o movimento de poder das mulheres. Professora do município de São Paulo, não descuida dos espaços, dos territórios e das oportunidades e os preenche com projetos de leitura e escrita. Quando lançou Militante da Arte, poema em cordel, espécie de diário pandêmico, inscreveu-se definitivamente no livro colorido do cordel brasileiro.

Militante da Arte traz o quadro de desespero que os artistas enfrentaram durante a pandemia de Covid-19. Mas não só. É uma carta sensível produzida pela reflexão na reclusão. O emparedamento causou em Lucineide uma espécie de despertar silencioso e aflitivo. O refúgio, primeiro e acolhedor, foi o verso de sete sílabas do cordel. As estrofes do cordel, a construção do arranha-céu do cordel, o trabalhar diário de suas próprias fundações para permanecer firmada na ilha, Farol de Alexandria.

Lu Vieira

Dani Almeida: Maternagem

O cordel brasileiro foi fundado sobre o verso de 7 pés, conhecido como redondilha maior. Mas foi sua conjugação em estrofes de seis versos, com rimas soantes alternadas, que fundou-lhe a primeira sapata. O edifício cordelístico firmou-se em construção altaneira, espécie de fortaleza por onde o lirismo, a epopeia e o drama do povo articularam-se na guerrilha literária brasileira, fomentaram focos de revolta em vários estratos sociais, escreveram e publicaram milhares de páginas e estabeleceram-se como células fecundantes.

A instalação da Casa do Cordel na Flip de 2022, em Paraty, na Casa do Iphan, praça da matriz, dimensionou a intervenção poética e a potência criativa cordelísticas. Naquela programação lançaram-se para o mundo vários títulos, entre eles Maternagem em Sete Versos, de Dani Almeida, poeta pernambucana radicada em São Paulo. Não é um cordel em sua forma tradicional. Ao invés da sextilha, a autora abrigou-se na setilha, a estrofe de sete versos, para pensar a maternidade. E, na autonomia daquelas estrofes, criou algo coeso e poderoso.

Cada setilha apresenta ao leitor e à leitora reflexões sobre o caminhar da mulher-mãe. Seus conflitos e aproximações, as alegrias e os dissabores, a rede de sustentação afetiva e psicológica, o desafio da múltipla atenção, as noites de sono e o sono de dias, a presença dos familiares e do companheiro, a vida social e os muros sociais altos, pesados, apartadores com cacos de vidro no dorso e cerca eletrificada, o salário menor, o machismo e a misoginia, mazelas do dia-a-dia. Dani Almeida deu à luz no seio da pandemia, na hora profunda das mortes tantas.

Apresentando a diferença fulcral entre maternidade e maternagem, esse livro-jóia-arte reúne, em constelada távola, mulheres importantíssimas no estradar da autora. A capa arrebatadora de Danielle Longobardi, as ilustrações de Maria Rosa Caldas, a apresentação da ancestral Benedita De Lazari, prefácio de Lu Vieira e Edimaria, lâminas de luz das Teodoras, e a bênção de Dona Maria de Jesus Almeida, mãe da autora e guardiã da família. A última estrofe do livro, acróstico em MATERNAGEM, décima, oferece a condição de cordel promovido a Filosofia. Uma produção da MWG.

Dani Almeida

Graziela Barduco: O cu e o pau de selfie

As mulheres associadas em torno do Movimento Cordel Sem Machismo atravessaram a ponte pênsil, movediça e frágil para o protagonismo. Criaram coletivos, forjaram territórios, incendiaram cercas, derrubaram muros, chutaram a bunda de meia-dúzia de cabras mimizentos, se sentaram no trono e escreveram sua própria estrada. A demanda das poetas trouxe a instalação e instauração de cordelarias dirigidas por mulheres, casas publicadoras multiplicando o material gráfico feminista e feminino.

A Cordelaria Castro cavou sua sede em Petrolina, sertão pernambucano, margem esquerda do São Francisco, onde jorram vinho e mangas, letra e numeração, poesia e tempestade. Nessa semana, dia 19, dia das poetas do cordel, foi lançado em São Paulo o folheto O Cu e o Pau de Selfie, de Graziela Barduco, do forno daquela cordelaria. O título, como era esperado, chamou a atenção. Talvez não pelo binômio “Cu e Pau”, mas por ter saído da máquina intelectual feminina. Aos homens, tudo lhes foi pavimentado, sobretudo os caminhos do vocabulário alternativo popular fescenino.

Por trás desse título há uma crítica ferrenha e necessária ao mundo digital ensandecido, onde falsas celebridades buscam abrigo e os desinfluentes se arvoram à má influência. Graziela leu Umberto Eco: “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis.” Citou Andy Warrol: “um dia, todos terão direito a seus 15 minutos de fama”. O encontro de um cu tímido e ensimesmado, abandonado por seu dono, maltratado, solitário, com um pau de selfie o transforma em celebridade instantânea. Em miúdos: o cordel de Graziela traduz de forma viva e lúdica a contemporaneidade delirante.

Algumas personas preferirão olhar para o título cabeludo, desculpem o trocadilho, do que constatar que Graziela Barduco domina a técnica, conhece os pormenores da arte cordelística, não se intimida diante da rima precisa e preciosa. A produção é de Graciele Castro, jacarandá nordestina. Capa em xilogravura digitalizada de Kelmara Castro, fortaleza piauiense. Apresentação de Varneci Nascimento, autarquia baiana. Como diz Cleusa Santo: a mulher, no cordel, não veio pra brincadeira. A autora faz parte dos coletivos Teodoras do Cordel e Mulherio das Letras.

Graziela Barduco