A orfandade das fotos Revista Kuruma'tá, 23 de janeiro de 202323 de janeiro de 2023 Seja muito bem-vindo à Kuruma’tá, caríssimo conterrâneo do Recife! Dentre a bela seleção de poemas e crônicas que nos enviou, destacamos essa A orfandade das fotos, crônica com tema que muito nos interessa aqui na revista, a fotografia, e que é tratado com beleza nessas linhas. Crônica de Joaquim Cesário de Mello Qual a serventia de uma foto sem lembranças? De que valem aqueles rostos fotografados de um instante que não existe mais? Rostos desaparecidos da vida cujos olhares ressuscitavam o burburinho hoje silenciado pela distância da memória. De que servem estes rostos e estas fotos se elas não foram feitas para os mortos? Qual vivo se interessa pelos vestígios domésticos e corriqueiros do cotidiano murcho de uma geração remota? Porém elas ainda resistem empoeiradas em meio ao mofo dos fundos das gavetas. Quantas caixas de sapato não guardam resíduos de memória de um passado desvanecido de quem não existe mais? As caixas velhas de sapatos e o fundo das gavetas são o cemitério onde estão sepultados o que deixou de existir de quem deixou de existir. Triste é o destino das fotografias de um morto. As fotos de um morto não me dizem nada. De nada sei o que sentia, pensava ou sonhava. Instantâneos de uma vida que não vivi, de juventudes e alegrias que não foram minhas, imagens indizíveis de migalhas de tempo em que eu não estava lá. Tudo é tão mudo e inerte nas fotos sem donos: fragmentos inanimados de uma vida invisível pelo esquecimento. São gravuras que só têm significado em função da vida daqueles que ali estão. As fotos sem o seu senhor são espectros que recusam deixar um mundo que não mais lhes pertence. Se essas fotos exalassem o aroma das flores teriam o odor dos cravos. Fotos assim tão órfãs não trazem a dor da saudade ou a crueldade do rememorar da perda. São ocas e fúteis. Não se pode sentir a brisa dos ventos entre o assanhar dos cabelos nem o brilhar da paisagem nas retinas. De que lá sei eu daqueles abraços cujas mãos não se tocam mais, ou dos amores rompidos no chegar das horas posteriores? Ali devem ter desejos frustrados e anseios sumidos. Sorrisos que depois viraram lágrimas, e olhares que olham para quem não lhes olham mais. Rostos opacos e obscuros. Semblantes gélidos e inanimados. Gestos petrificados. Flagrantes proscritos e extintos. Segredos desaparecidos para sempre, permanentemente. Por que, então, eles continuam ali a nos desafiar a eternidade com o registro desafiante de sua imutável finitude? Para que servem os retratos depois que vem a morte e o fim de tudo? Deveriam evaporar no exato segundo do falecer de seus senhorios. Não ficariam assim inúteis e não seriam apenas somente fotos. Temo o triste destino das minhas fotos. Daquele menino de ondulados cabelos ainda louros salpicados de laquê, posando com um olhar distante como quem assustado olha além da infância. Só eu sei daquele menino e de suas confidências e de todos seus esconderijos e mistérios. Só eu sei e ninguém mais. O que será dele naquele retrato quando eu não mais viver? Morrerá o menino comigo, restando a foto que nenhuma pessoa mais olhará Crédito da imagem: Autoria não identificada/Acervo Instituto Moreira Salles Joaquim Cesário de Mello é psicólogo, psicoterapeuta e professor universitário, residente e domiciliado em Recife (PE). Em meados dos anos 1980 participou do Movimento de Escritores Independentes e foi colunista da Vida Crônica (1998 – 2002) do encarte JC Cultural do Jornal do Commercio (PE). Escritor e poeta, participou de várias antologias literárias, entre elas Nouveaux Brésils Fin de Sciècle (2000), Poesia Viva do Recife (CEPE, 1996) e Cronistas de Pernambuco (Carpe Diem, 2010), Poesia na Escola (Palavra e Arte, SP, 2021). Autor dos livros Dialética Terapeuta (Litoral/PE, 2003), A Alma Humana (Labrador/SP, 2018), A Psicologia nos Ditados Populares (Labrador/SP, 2020), A Vida Como Um Espanto (Labrador/SP. 2021) e No Cemitério das Nuvens (Folheando/2022). A