Da série Admiráveis encontros Revista Kuruma'tá, 10 de maio de 202310 de outubro de 2023 por Marco Simas Ao longo dos tempos, em situações completamente prosaicas, sem nenhuma preparação ou arrumação, mantive inopinados encontros com pessoas que considero estelares. Algumas que sempre admirei. Para começar abrindo a série, conto um que chamarei de: é ELE sim. Estamos falando de 1979, ano oficial da anistia aos presos políticos brasileiros, quando os exilados passaram a ter o direito de voltar para casa. Ano em que as coisas começavam a parecer normais; o medo cedeu, lentamente, lugar ao sentimento de plenitude cidadã, se é que isso existe, mas?Bom, foi assim:Em um dia comum, meio da semana, nada de excepcional. Eu morava em um pequeno apartamento na Rua Barão de Ipanema em Copacabana, primeiro apartamento de um mineiro no Rio de Janeiro. Solteiro, claro. Vivia cercado de fotos e livros, movido à música e a miojo, argh! Coma miojo durante um ano e depois me diga se não é argh! Meu vizinho de porta era um cara absolutamente legal, simpático, boa gente, na época caricaturista da coluna do Swam, no jornal O Globo. Assinava Jimmy Scott. Se não me falha a memória o nome verdadeiro é Arturo. Demorei muito tempo a me entrosar com ele, pois não entendia nada do que falava. Era chileno dos bons, que se exilou por aqui depois da queda do Allende em 1973. Quando consegui sacar que não precisava entender tudo que ele dizia, que bastava ficar atento a intenção da frase e a preposição que usava para respirar ou pensar, algo como êtê, relaxei e ficamos amigos. Uma das boas coisas que Jimmy me ensinou foi beber “pisco”1. Fiquei amigo da família e gostava de ver a filha do casal, Lorena, simpaticamente séria, se esforçando no portunhol. Um dia me casei e Jimmy fez o convite, uma charge em que eu aparecia como Tarzan, carregando minha Jane no colo. Muito engraçado. Em agradecimento dei a ele toda a coleção, preciosa, de revistinhas de sacanagem do Zéfiro, que juntei a vida toda. Não eram poucas. Pois bem, vamos ao que interessa: naquele dia comum, voltei da praia no meio da tarde, era estudante, e estava preparando um belo miojo com frango de padaria, quando a campainha foi tocada. Gritei para a porta um já vou. Pequenos apartamentos têm essa vantagem. Me dei conta que estava apenas de sunga, mas já aprendera que em Copacabana isso era uma roupa como outra qualquer, e ainda pensei: deve ser o porteiro ou o Jimmy, tudo bem. De sunga e com o pano de prato jogado no ombro, abri a porta. Ali parado, me olhando com olhinhos muito vivos, envergando um surrado terno com gravata, estava ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade. Por um instante, que depois me pareceu rápido demais, ficamos admirados com o que víamos. — Pois não, consegui dizer idiotamente.— Boa tarde, disse o poeta com sua voz característica de mineiro distante, é aqui que mora o senhor Jimmy Scott? E sorriu com meia boca.— Não, infelizmente não. Consegui dizer recuperando minha presença de espírito.— Ah, que pena. O porteiro me disse que podia subir, o interfone está quebrado…— Não, quer dizer, sim é aqui. Ele franziu a testa, provavelmente já imaginando que encontrara um maluco. Quer dizer, ele mora aí, disse apontando a porta atrás dele. É meu vizinho, acrescentei com orgulho. Imediatamente toquei a campainha, ao alcance da mão. Ficamos aguardando. O poeta virou-se de frente para a porta vizinha, e eu pude contemplar, por um tempo razoável, o seu perfil esquerdo, sem nada conseguir pensar, a não ser: esse é o verdadeiro perfil de um poeta. A porta foi aberta e apareceu Jimmy com seu sorriso, dizendo êtê… E eles entraram. Meu amigo chileno riu para mim e deu passagem ao grande Drummond, que antes de desaparecer casa adentro, se voltou e me disse um obrigado repleto de poesia, momento único da minha vida. Sorri e fechei os olhos para aprisionar aquele instante.Pra matar a curiosidade e mostrar a generosidade do Poeta, conto que lá foi ele agradecer pessoalmente ao artista, uma caricatura publicada na coluna do jornal. Soube depois que adorou o “pisco”. 1A BEBIDA DOS ANDESO grande consumo do Pisco, um destilado de vinho, concentra-se principalmente no Peru, no Chile e na Bolívia. Originou-se exatamente ali, na região andina. Infelizmente, talvez até em razão da disputa de sua paternidade, ele é pouco divulgado no exterior. Enquanto a maioria das bebidas tem uma única procedência reconhecida, a invenção do Pisco, ocorrida no século XVI, é disputada inclusive judicialmente por peruanos e chilenos. Ambos a consideram sua. O mais aceito, porém, é que tenha nascido no Peru. O nome da bebida já era conhecido no país, antes de sua criação. Na linguagem quéchua, falada pelos incas no Peru pré-colonial, pisccu era um pássaro que habitava a região. Ali também se instalou uma tribo que produzia vasilhas de barro chamadas piskos, nas quais se elaborava um fermentado primitivo. Quando os espanhóis trouxeram as vinhas, a palavra pisco passou a identificar o novo produto. Foto de Dtarazona O Pisco é um brandy, como o cognac. No Peru, é feito principalmente com uvas da variedade nacional Quebranta, pouco aromática, mas de sabor intenso. Dizem ser mutação genética de uma das uvas trazidas pelos espanhóis. São prensadas no dia da colheita. O vinho fermenta ao ar livre na época do verão. Logo após a vinificação, é destilado em alambiques de cobre até atingir a graduação alcoólica desejada, normalmente ao redor de 43 graus. Não se permite a redução com água. Outras uvas também são aprovadas. Nos estilos mais aromáticos, emprega-se bastante a Moscatel de Alexandria. Tal como nos vinhos, o Pisco pode ser varietal ou blend de diversas uvas, chamados respectivamente de Puro ou Acholado. Já o chileno, elaborado em região demarcada no Vale do Elqui, utiliza principalmente cepas da família Muscat no vinho-base e também é destilado em alambiques de cobre. Mas, ao contrário do peruano, pode receber a adição de água para reduzir o teor alcoólico resultante da destilação. Com isso, existem tipos com baixa graduação alcoólica. Qualquer que seja a origem, o Pisco é límpido como água, exceto se for envelhecido em carvalho, quando ganha cor. No nariz, apresenta-se suave com notas de especiarias. O corpo é médio. O sabor frutado tem ainda toques florais. O final se revela quente e prolongado. Pode ser bebido puro ou como ingrediente de vários coquetéis, a começar pelo antológico Pisco Sour. Eis a receita: numa coqueteleira, adicione 3 partes de Pisco, 1 e 1/2 parte de suco de limão, 1 a 2 colheres de sopa de açúcar e um pouco de clara de ovo pasteurizada para dar cremosidade; bata bem, com algumas pedras de gelo, coe e sirva em copo de coquetel ou flûte. Fica delicioso. Sobre Marco Simas Minha paixão é contar histórias. Assim, comecei minha trajetória profissional como realizador de filmes e vídeos. Graduado em Publicidade, bem no início, trabalhei em produtoras, com peças institucionais e de propaganda. Tive algumas experiências em televisão, como diretor de programas educativos. Mas, logo fui seduzido pela possibilidade de contar histórias curtas, no cinema, aliando ficção, engajamento político, memórias e questões sociais. Porém, a escrita foi o que mais me trouxe prazer, muito estimulado pelo gosto da leitura adquirido na infância. Desde 2007 venho pesquisando, escrevendo e publicando, graças ao interesse de leitores e editoras. Assim, realizo os filmes no “papel”. A CrônicaLeituraMemória
Fico muito honrado ao ver meu texto publicado nesta revista, verdadeira resistência cultural. Ao grande Toinho Castro o meu muito obrigado. Responder