A água sempre procura por espaços secos Revista Kuruma'tá, 22 de julho de 201930 de dezembro de 2019 Texto de Eduardo Frota Era uma criança incomum. Seus ossos eram moles, retráteis. Um a um, dobravam-se feito os de um contorcionista. Os pais, estavam certos disso, aquilo era uma enfermidade, doença. Faltava cálcio. No entanto, a verdade é que o dom do menino estava ligado à crença, dele mesmo, de que seu corpo era pura água. Desse jeito era mais fácil. Chorava – e assim pensava que perdia líquido e se tornava um pouco mais duro, retesado. E corria para ler histórias engraçadas. E pedia aos pais que contassem piadas. Suava – e assim pensava que a sede nada mais era do que o corpo avisando que seu lado de dentro secava. E corria para o banho deixando a água penetrar os poros. Urinava – e assim lembrava que quando o líquido era amarelo, melhor mesmo era livrar-se dele na mesma hora. E corria ao banheiro para ver a descarga levar tudo aquilo embora. Um dia esgueirou-se com habilidade notável por cada canto do quarto, por cada flanco da casa, por cada esquina da vida, inclusive das que cruzavam com quem ele nem conhecia. E neste dia percebeu o amor – e deixou uma lágrima descer os olhos. correu para contar aos pais – a camisa ficou encharcada. fez xixi – antes de dormir, para recomeçar no dia seguinte. Fluía a vida, fluía a água. E o menino, sorria. Latvian circus contortionist performer – circa 1930 A AfetoContoCorpoEduardo FrotaLeituraLiteratura