A desencavada Ermida do Ó e outras histórias de um Rio de Janeiro primevo

Há quem diga que conhece o Rio de Janeiro. Eu não ouso tal afirmação. Rio de Janeiro é uma cidade que está sempre pronta a nos surpreender a cada virada de esquina. Sempre algo por ser descoberto, percebido, interpretado. Andar pelo Rio é um exercício de poesia, história e mesmo filosofia. Cidade de muitas camadas, sobreposições. Hoje o caríssimo jornalista Luiz Henrique Neto inaugura sua presença na Revista Kuruma’tá remexendo nessas camadas, levantando um dos tantos véus.

Texto de Luiz Henriques Neto


Esta semana fiquei sabendo que, durante a restauração da antiga Catedral, ali na Primeiro de Março, tinham desencavado a antiga Ermida do Ó. Assim, munido da minha câmera e minha nova lente, que eu estava doido pra usar, fui visitar o local. Tem um Museu e Sítio Arqueológico, minúsculos, na velha Sé, mas vale a visita. Vai me dizer que nunca viajou e foi visitar uma igreja que mais tarde descobriu ser do século XX e a maior armadilha de turista, sem nada de interessante dentro?

A Ermida do Ó era uma capelinha tosca e simples, como muitas do primevo Rio de Janeiro. As suas ruínas são essas da primeira e da segunda fotos. Ao seu lado foi construído um Hospício e não, não era para alojar os meus amigos de faculdade, mas o nome que se dava na época à Casa dos Romeiros. Quem exatamente fazia romaria ou peregrinação ao Rio de Janeiro do século XVI ninguém nunca explicou, mas pelo menos casa pra recebê-los tinha. Talvez justamente pela parcimônia desses fiéis é que quando chegaram na década de 80 uns padres pra fundar a Ordem de São Bento, alojaram eles lá. Logo depois, Manuel de Brito, capitão português que veio pra cá com Estácio de Sá e assim se tornou dono de umas terras, doou-lhes um morro e os beneditinos estão lá até hoje. Aliás, por causa desse Manuel de Brito é que a praia que tinha ali onde hoje é a Praça XV se chamava Praia de D. Manuel e até hoje a rua do Fórum se chama rua D. Manuel.

Realojados os padres, o Hospício logo em seguida recebeu outros. Eram carmelitas, com o mesmo intento de estabelecer sua ordem por aqui. Ofereceram-lhes a princípio um morro, mas eles o acharam ermo e distante. Era o Morro hoje de Santo Antônio (ou o que restou dele). Lembrem-se que naquela época a área da Lapa – Passeio, Carioca e redondezas – era um pantanal, e daqueles malcheirosos. Tanto que abriram uma vala pra drenar aquelas águas e renová-las. Hoje é a rua Uruguaiana e por isso ela é uma das poucas retas daquele tempo.

Os carmelitas gostaram da área onde estavam e conseguiram permissão para construir seu convento ali mesmo, em 1611, começando a construção em 1619, quando receberam permissão da Câmara pra usar as pedras da hoje Ilha das Enxadas, onde fica a Escola Naval, mas que na época não tinha nome e passou a se chamar Ilha de Ruy Vaz Brito porque este foi o governador que concedeu a licença de exploração.

A concessão de terreno mencionava a construção do convento e sua “cerca”. Talvez fosse a paliçada, que está na terceira foto. Na base de pedra, podem se ver os buracos onde ficariam os troncos. Curiosamente, é parecida com aquela de “O Novo Mundo”, do Terence Malick, com as toras espaçadas (se bem que no filme estavam mais pra gravetos do que pra toras). A nossa ideia é que qualquer paliçada seja maciça, como um forte, mas provavelmente eles não estavam esperando ataques de artilharia dos índios (contra quem ela foi provavelmente erigida) e queriam poder ver o que estava acontecendo do outro lado – como, curiosamente, os agentes de imigração disseram que queriam o “muro” pro Trump.

Na época, o mar batia até ali. Frei Vicente de Salvador (1) conta que uma baleia certa feita encalhou em frente ao Convento. Por algum motivo de aquecimento global ou fosse lá o que fosse, ainda no século XVI o mar já estava começando a recuar. E, como era um costume tolerado pelos governantes na época, a área que se formou ali passou a ser extensão daquela dos Carmelitas, que dela se apossaram. Até que em 1683 a Câmara botou o olho naqueles terrenos valorizados e resolveu reparti-los e aforá-los. Os padrecos ficaram furiosos, disseram que iam perder a vista, o ar fresco, que teriam o claustro devassado, enfim, botaram a boca no trombone. E não era de bom tom mexer com os caras – podiam ser monges, mas não do tipo que pensamos. Bagunceiros, irredutíveis, insurretos, tinham por algum motivo uma rivalidade com a Ordem da Misericórdia, que já naquela época possuía o monopólio dos funerais. Quando passava um féretro em frente ao Convento do Carmo, eles desciam de porrete na mão pra tocar o terror, hábito esse que mereceu uma ordem real vinda de Portugal pra acabar. Pra dar mais jeito de Ordem religiosa a eles, mais tarde foi nomeado um interventor, que ficou famoso por sua rigidez, Joaquim José Justiniano. O que foi uma pena, porque provavelmente a Igreja Católica não estaria perdendo tantos fiéis hoje em dia se tivesse guardado esses rituais.

Mas a queixa dos padres desordeiros deu resultado. Conta Vieira Fazenda que lhes foi cedido o direito àquela várzea em frente pelo rei, que para tanto argumentou: “os Jesuítas, Beneditinos e Franciscanos ocupam montes e têm fresco em primeira mão; os Carmelitas ficaram na planície e precisam de ar e luz; logo, há toda a razão, e como eles são viventes como os mais, têm direito ao que pedem.”

E tão enfezados eram os capuchinhos daquela época que, quando viram uma pedra fundamental erigida naquele terreno foram lá e arrancaram. As autoridades foram reclamar com eles, que era uma afronta, afinal era um marco real – e um marco real concedendo aquela área aos carmelitas. Os padres disseram que não estavam acima de reconhecer um erro e que a poriam de volta no lugar, o que fizeram.

O atual convento já foi alvo de muitas reformas, o que lhe descaracterizou a fachada. O mais próximo do aspecto original, segundo Vivaldo Coaracy, é a face que dá pra Sete de Setembro, que está na quarta foto. Os carmelitas ficaram instalados no Convento até a chegada da Família Real. Sendo o Paço muito pequeno pro tamanho e pros gostos dos portugueses, eles se adonaram também do edifício ali próximo e foi assim que eles foram sendo empurrados até a Tijuca, na igreja dos Capuchinhos.

Mas antes disso, no século XVIII, eles construíram a atual igreja de Nossa Senhora de Monte do Carmo, a antiga catedral. E como ela se tornou a antiga catedral, com tantas igrejas mais luxuosas, como a Candelária, dando mole? A primeira Sé do Rio, quando ele se tornou uma diocese, foi uma igreja no Morro do Castelo, no século XVII, que, com a mudança da cidade pra várzea e crescimento, foi se tornando cada vez menos frequentada, ainda mais com o templo dos Jesuítas, mais opulento e atraente, ali perto. Quando foi instituída na cidade a Ordem de São Benedito, dos “homens pretos”, foi-lhes concedido alojamento junto à Sé.

Os negros, obviamente, não recebiam um bom tratamento das autoridades eclesiásticas, que muitas vezes os tratavam como provavelmente os viam – seus escravos. Após alguns anos, eles se cansaram, e obtiveram permissão para construir sua própria igreja. Após obtê-la, conseguiram surpreendentemente levantar uma grande quantidade de fundos e construíram a atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, aquela branca do lado do camelódromo – a da quinta foto. Mais próxima do Centro da cidade da época, e relativamente monumental, a turma do Bispo logo achou que ali seria um ótimo local para a nova Sé. Principalmente porque as outras irmandades não estavam a fim de receber ordens de estranhos dentro de sua própria casa, e ali era a casa dos negros mesmo.

Então, como num pesadelo, na igreja que eles construíram para se livrar da turma episcopal, logo estava morando a turma episcopal – e torrando a paciência deles novamente. O pessoal da Sé vivia dizendo que ia logo construir um templo, mas foram ficando por quase 80 anos. Mesmo tendo sido designado local pra construção – que passou a se chamar “Largo da Sé Nova” e hoje atende por Largo de São Francisco, eles continuaram aboletados junto aos homens pretos. O que só iria mudar com a chegada da Família Real, também.

A Família Real chegou e ia assistir à primeira missa no Brasil. Deles, não do Brasil. Obviamente seria uma ocasião de gala, cheia de festança e jaez. O povo da Sé mandou avisar aos homens pretos que era pra eles se esconderem, para que os Bragança não se ofendessem com a presença de negros. O que, obviamente, levou-os a se enfileirarem de cada lado da rua do Rosário carregando palmas para saudar o rei. O espetáculo enfureceu tanto o bispado que a Matriz se mudou para a igreja dos carmelitas, que tinha a conveniência pros regentes que era ali do lado mesmo.

A Igreja sofreu várias reformas, e uma recente restauração. A torre direita é do começo do século XX e aquele Cristo (ou santo) realista lá em cima não tem nada a ver com o resto. Pelo menos ainda conserva o frontão que é considerado o mais bonito do Rio. A recente restauração foi a que desencavou a Ermida do Ó. Ela – e a catedral, é claro – estão abertas para visitas, aos sábados, de 9h30m a 12h30m. Seja um bom carioca e vá visitar. Não temos muito monumentos antigos e com história pra apreciar nesta cidade.

As fotos são imagens variadas da igreja, incluindo os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, na cripta desde 1903. Esperamos que tenham se divertido e curtido o tour.

Todas as fotos de Luiz Henrique Neto



(1) Escreveu uma história do Brasil, acho que em 1723, e, pela primeira vez, alguém escreve que o problema do Brasil é a mentalidade extrativista – os colonos vinham aqui somente pra extrair o que pudessem, lucrar o que pudessem, e voltar pra casa, sem intenção de construir uma nação ou permanecer. Certos conceitos da nossa terra são mais antigos do que pensamos.


Luiz Henriques Neto é jornalista, tendo trabalhado no Jornal dos Sports, Sport Press, e colaborado para O Globo e Manchete. É tão velho que escreveu novelas de rádio para a Rádio MEC AM e peças de teatro que ganharam concursos da Funarte, FUNARJ e SENAC e foram montadas por Domingos de Oliveira, Rosane Goffman, Luiz Carlos Maciel e Tina Ferreira. Como roteirista, trabalhou para a Conspiração, nos filmes da Xuxa e na primeira temporada de Vai que Cola, e também para Lucélia Santos e a TV chinesa. É o sócio capitalista da escola de Música EAPE – Espaço de Artes Patrícia Evans.


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