Texto de Terêncio Porto
Os dois últimos livros que li foram GRAÇA INFINITA e O VERÃO TARDIO. Este ensaio contém spoilers, e espero que não interesse somente a quem leu esses dois livros porque é um recorte específico demais, que limitaria seu público a uma dúzia de pessoas ou sei lá. Em princípio, não há nenhuma relação direta entre as duas obras a não ser o fato de que as li na sequência. O primeiro, um raro tijolo de quase 1200 páginas (letras e entrelinhas pequenas) escrita pelo já falecido gringo David Foster Wallace, que levei quase onze meses pra ler, de fato uns 5 visto que tive uma mega interrupção no meio que me impediu de ler qualquer outra coisa que não fosse o que eu estava trabalhando. O segundo, pouco menos de 250 páginas do brasileiro Luiz Rufatto, uma roadtrip pro buraco, mas cheia de ternura. Entre eles, um detalhe crucial inevitavelmente amarra os dois livros, pra lá de possíveis coincidências: a presença de alguns suicídios. No caso da obra estrangeira, a coincidência extrapolou inclusive o limite das páginas, da trama e das personagens pra atingir o próprio autor. Mais de uma década após a publicação da obra, é bom que se diga.
Pois bem, noves fora esses detalhes, algo que me impressionou profundamente nas obras, e de maneira bem diferente, foi a abordagem de certos limites do sofrimento psíquico presentes em ambas. O sofrimento poderia permear tudo e ainda assim não abordar suicídios; o tanto de sofrimento psíquico abarcado em cada uma das obras (e sentido pelo leitor, até certo ponto, variando de pessoa pra pessoa, naturalmente, cada um sente e reage de maneira exclusiva / singular) não necessariamente implicaria no fato de alguma personagem tirar a própria vida. De fato, em nada implicaria. Aliás, é bom que se diga, o que se fazem presente são muito mais os fantasmas de um suicídio e o rastro de sequelas deixado por ele do que um gesto desses propriamente dito, tanto em GRAÇA INFINITA quanto em O VERÃO TARDIO.
No tijolaço gringo, que ao longo de suas infinitas páginas conta muitas histórias – multiplot soa quase eufemístico pro que o DFW fez, tão ampla é a trama e tão pouco que eventualmente os diferentes plots se tangenciam, às vezes quase sem fricção alguma, às vezes tão tardiamente que os balões tensionais já praticamente se esvaziaram, jazendo meio murchos no chão do salão em fim de festa –, a suposta história central (a ideia de centralidade fica comprometida pelo tamanho de todo o resto, e pra mim não é nem de perto a melhor história, pra mim o outro núcleo dá de dez, a Casa de Recupeção, que por sua vez desdobra numa miríade de outras histórias a partir do dia a dia de seus residentes) gira em torno da família Incandeza, cujo patriarca suicidou-se. James, espécie de Professor Xavier que fundou uma academia de tênis infanto-juvenil pra crianças mutantes (o suposto palco principal do livro / festival de plots) pra depois abandonar tudo e virar um cineasta marginal mega cultuado em sua excentricidade sem fim, encarnado em flashbacks num combo de esquisitice e genialidade quase difícil de imaginar, tão variado e esquisito mesmo, irônico e inusitado em todos os seus aspectos, físicos inclusives. Suicidou-se com o auxílio duma customização realizada por ele no melhor estilo Professor Pardal, enfiando a cabeça num microondas que pôde funcionar com a porta aberta e assim fazer com o crânio do sujeito o que ocorre quando você coloca um ovo cru nesse tipo de eletrodoméstico. Não faça isso, por favor, procure um vídeo no youtube que é melhor. E, naturalmente, esse fato fica gravitando nas páginas que tratam da família (num chute, 35% do livro), imersa na tal academia de tênis cuja rotina beira, de certa forma, uma rotina de um campo de concentração “feliz”. Tipo, difícil de imaginar.
Bom, mas o foco aqui é o sofrimento psiquíco de uma maneira geral, e certos limites dele tocados nas diferentes histórias, e não o fato de termos suicídios encrustrados nas tramas. No entanto, no que se refere ao equilíbrio das partes, mesmo comparando um prato de saída já desequilibrado do ponto de vista quantitativo – 1200 páginas versus 250 –, em O VERÃO TARDIO a obra inteira também é permeada pelo suicídio da irmã do narrador, arrastando esse peso, esse visgo, com maior ou menor pegada, no desenrolar dos acontecimentos. Sempre ali, o fantasma assombrando a trama, como no outro caso, esparramado ao longo do arco, ressoando perpetuamente. Porém, ao contrário do outro, o do patriarca dos Incandeza (incandescentes?), que cometera o derradeiro gesto do auto assassinato de forma deliberada e engenhosa, premeditado e perpetrado por um “homem feito”, com família, esposa e três filhos, que mudou de carreira com sucesso 3 vezes ao longo da vida ou coisa assim, na obra brasileira o que ocorre é a brutalidade deveras maior, a meu ver, de a vida ser tomada por uma menina de quinze anos, que naturalmente não sabe muito bem quem é e fez muitas poucas escolhas na vida. Bom, aqui já esbarramos num limite do sofrimento, essa premissa do protagonista, mais que qualquer outro membro da família, vestir o fardo da culpa pelo ocorrido à irmã. Barra demais. E o detalhe (omitido porque seria um spoiler ingrato pra quem tem tanto carinho pela obra) que o implica, persegue e esmigalha só é esclarecido mais ou menos na segunda metade do livro, mas isso meio que ilumina / explica sua incapacidade de superar o ocorrido depois de uns 40 anos, ou seja, de nunca superar de fato.
Porém, agora sim, deixando de lado a reverberação suicidal – que não se limita ao aqui relatado, pasme –, a construção dos diferentes romances se diferencia em muito no tom e na estrutura, além do tamanho, pra desta forma chegar em certos cumes do sofrimento psíquico, ou ao menos aludir a eles, humildemente. Em GRAÇA INFINITA, a narrativa, predominantemente em terceira pessoa (mas não somente, tendo algumas partes em primeira pessoa, que, no entanto, num chute, devem se limitar a 5% do livro), vai pulando de núcleos, separados em grandes blocos (tudo é meio agigantado, personagens, descrições, notas de roda pé, nada não é turbinado, pensando essa expressão manifesta dentro da cultura americana, rica e com acesso quase ilimitado a tudo etc; anabolizada também cairia bem aqui, com excesso em quase tudo, uma cultura superavitária por excelência). E desses megablocos, salvo por exemplo a irônica proximidade geográfica dos dois principais endereços da história, muitas vezes quase não dá pra avistar as outras pontas da trama, os outros blocões. Porque gigantes demais, e porque demoram demais pra se encontrar, e porque eventualmente só se esbarram, de levinho, quase sem fricção, quase sem se reparar, como dito. Quando se esbarram mais profundamente, perto do inavistável fim, parece que perderam pressão porque a expectativa já passou um pouco do ponto, o balão murchou etc. Porém, isso não é demérito, é estilo, estilo de um cara que talvez tivesse fôlego demais, talvez fosse um americano bom demais, o melhor, talvez, enquanto fruto de uma virtuosa sociedade tipo SUPER doente, onde se inventou o mass shooting, campeã em obesidade mórbida, bem como em obesidade midiática e de entretenimento, e que serve de modelo pro mundo todo, não à toa, aparentemente SUPER doente ele também, esse nosso mundo, do qual o Brasil é uma fração apenas, sem nenhum protagonismo, mas SUPER dodói nós também, não custa lembrar. Ao nosso jeito.
Por sua vez, em O VERÃO TARDIO a trama é conduzida exclusivamente em primeira pessoa, com uma narrativa tão pessoal que é quase claustrofóbica, e que somente se interpola entre o presente da viagem de reencontro da personagem com sua terra natal, Cataguases, e o passado da sua infância, vivida naquelas mesmas paragens por onde se arrasta, aparvalhado pelo calor, por desconfortos físicos, pelos vertiginosos reencontros, do começo ao fim aturdido. E Rufatto faz as mudanças de “pista” sem usar seta, embaralhando lindamente as duas frequências, escrevendo tão bem que se dá ao luxo de invariavelmente mudar de sintonia em meio a um parágrafo, ir e voltar, às vezes é só no meio da frase que se nota que o tempo foi cambiado do passado pro presente, do presente pro passado, pois tudo está atrelado à ótica da cabeça do narrador, e mesmo com a troca de pistas não há solavancos, mesmo quando só notamos a mudança no meio de uma frase, ainda assim é macio, e eu acho isso chique pra caralho, como ele fez isso, pardon my french.
Bom, não tinha também deixado claro, mas os dois autores em questão, cujas obras infelizmente conheço ainda pouco, eu tiro meu chapéu pros dois, fico pelado pros dois, acho que são realmente dois mestres, que fazem / fizeram o que há de melhor, estando no mesmíssimo nível (meus critérios não devem valer de porra nenhuma, tranquilo) da Ferrante, Bolaño, Miller, Lúcia Berlin, Roth, Coetzee, Mutarelli, “aqueles” contos do Rubem Fonseca etc (tem mais uma porrada de outros, certamente, mas name dropping é meio merda), as coisas que mais me assombraram a vida.
Beleza então. Os cumes do sofrimento, né? Bora.
GRAÇA INFINITA: assim, de bate pronto, só de memória, sem consultar nem ter sublinhado o livro (tenho pavor), ficaram queimadas nas retinas algumas passagens: como o grande herói (na minha visão, meu paladar) Don Gately, quando ainda era arrombador de domicílios, deixou amarrado uma vítima, e como esta sufocou lentamente nas horas que se sucederam, porque amordaçada e com nariz entupido, e como levou bastante tempo até que morresse (e o DFW toma horas mesmo, tranquilo, explicando o lento sufocamento dum jeito imaginativo que só vendo / lendo); a menina adotada testemunha silenciosamente, ao longo dos anos de sua adolescência, o pai adotivo abusar da irmã mais nova, filha legítima, que tem paralisia cerebral, não sem antes vesti-la (a irmã mais nova) com uma máscara com a cara de uma atriz famosa, até uma noite em que depois do abuso o pai esquece a máscara e ela mesmo tem de tirar, pra que a mãe não desconfie, e então toma coragem e foge, indo virar puta num bordel dos mais xexelentos da América, aos 17; uma cracuda engravida e fica chupando o chachimbo seis, setes meses até parir um bebê prematuro e natimorto, e entrar em choque e continuar chupando o cachimbo carregando a tiracolo o cadaverzinho mal cheiroso até que todos os cracudos do bairro passam a evitá-la, coisa assim. Pincei só 3 exemplos, mas eles se multiplicam ad infinitum ao longo das páginas, em superações constantes, o sarrafo sempre subindo (lembra até BREAKING BAD em suas primeiras temporadas, cada qual reservando uma cena ainda mais violenta do que o ápice da temporada anterior), grandes catedrais do sofrimento e suas diferentes torres, usando esse poder anabolizado que a prosa do DFW tem, foda. E sempre mistura sofrimento psíquico com físico, como deu pra sacar nos 3 exemplos, de um jeito um tanto extremado, a terceira pessoa onisciente inserindo o leitor dentro dele, do sofrimento.
E em O VERÃO TARDIO, pois bem, não vou enumerar alguns cumes propriamente ditos porque a distinção das abordagens do sofrimento começa por aí. O GRAÇA INFINITA é mais objetificador, enquanto o outro é mais subjetificador, transmitindo o sofrimento muitas vezes em detalhes infinitesimais. Quem viu o Rufatto discursando em Frankfurt (youtube), representando o Brasil na mais importante feira de livros do mundo, pôde ver um cara corajoso pra cacete, e de uma singeleza e uma delicadeza ímpares. Coisa linda. E a obra em questão exala isso, só que o leitor fica com a cara enfiada no sofrimento do narrador e protagonista, e segue quase suando com ele, e num P.O.V. encontra as suas irmãs vivas, sobrinhos, cunhados, conhecidos de infância, cenários evocativos, até mesmo um antigo professor, depois o jazigo da família, pai, mãe e irmã juntos, por fim o irmão ricaço, e ao longo disso você, o leitor, segue comprando sabonete, reclamando amiúde do café, suando como um porco, mudando de endereço e pegando ônibus, conferindo o troco, tenso com a escassez do dinheiro, trafegando pela miséria e degradação reinantes na região, mas sobretudo descortinando toda infância e os laços afetivos de Oséias, laços esses truncados e machucados e aparentemente condenativos desde o princípio. Marcados pelo suicídio da irmã. Só perto do fim é que emergem mais claramente memórias boas, e o passado começa a fazer algum sentido. Antes, parece que a vida é toda ela ruínas, como os cenários e as pessoas circundantes.
Ao longo da viagem, um tanto dolorosa, obviamente, vamos esbarrando nos tais limites do sofrimento psíquico, e vamos superando-os de alguma forma porque a vida segue. Porque tem sempre o dia seguinte, até o fim, ao longo daquela semana, narrada dia a dia. No entanto, a despeito do dia seguinte chegar, você mastiga antes o presente amargo do dia que passa arrastado e sem rumo, e a partir da subjetividade de Oséias e seus chaveamentos entre viver o presente e lembrar / reviver o passado, chega-se a alguns limites que são barra pra segurar, ainda mais se você, leitor, estiver meio sambado na vida, e no momento em que vivemos parece que todos estamos. Só que isso enaltece e valoriza a nossa luta, resistência. E nos fortalece, por fim. Se não nos matar, enfim. Quem viver, verá.
Rufatto consegue chegar, com sua delicadeza e singeleza, a picos de sofrimento psíquico que o DFW parece ter de construir Titanics pra te levar a chegar perto. Talvez seja mesmo fruto de onde vieram, que define muito quem são. Um precisa fazer mil flexões de braço pra se sentir forte, e assim o faz, e é; o outro, não quer se sentir forte porque já o é, pelo que é. Os dois me parecem certos.