Texto de Aderaldo Luciano
Uma vez eu sentei no batente lá de casa, de noite. Olhei para o céu e senti uma vontade de morrer, só para saber como é do outro lado da porta da Vida. Nesse tempo, muito jovem ainda, imaginava que a vida era um sonho e cada um sonhava a sua. Logo, a Vida seria uma biblioteca de sonhos, um apanhado onírico, uma sinfonia de onde, a qualquer momento, seríamos resgatados. E esse resgate deveria ser, naquele tempo, para mim, a Morte, o despertar.
Tempos depois, estava num ônibus, também de noite, indo de Caruaru, no Pernambuco, para Propriá, no Sergipe. À meia-noite, paramos em São Miguel dos Campos, Alagoas. Um sujeito aproximou-se e ofereceu-me uma aliança de ouro. Preço baixo: queria voltar para sua terra, no Sertão. A aliança era falsa e o sujeito, um trambiqueiro. Mas o Sertão, ele pronunciou essa palavra com tanta ternura que, a partir daquele encontro, passei a imaginar a Vida como um naco de Sertão, sendo um outro naco, a Morte. Tudo Sertão. Tudo Vida.
Alguns anos depois, em 1988, acordei em uma cama do Hospital Pinel, no Rio de Janeiro. Estava amarrado em cruz na cama de metal. Minha calça branca estava molhada de urina. Meus braços e o tórax tatuados de hematomas. Na enfermaria, comigo, três ou quatro outros, conversando naturalmente, rindo. E eu amarrado. A Vida, eu pensei, é uma loucura só. A Morte, o mundo lá fora, com seus milhões de carros e holofotes.
E agora, ouvindo atentamente as 15 faixas de um disco de Júnior Cordeiro, senti-me aveludado, elevado pelos galopes, toadas, xotes, canções do galego das terras de São João do Cariri. As pradarias celestiais são certamente bolsões de Sonhos, Sertão e Loucura. Esses metais, sopros, pandeiros, violas, violões, acordeons, assim mesmo no plural, são a trilha sonora da viagem eternal. E essa voz estranha, britadeira emplumada, serra elétrica espumante, choveu no meu cérebro bastardo.
Belo coreto sonoro, de onde provém a máxima “a força é desconhecida e é divina…” Citações diluídas, entre Kafka, Pinto e Marinho, Saramago, Machado, Veríssimo, o beato Zé Lourenço, Marquez, Foucault, Freud, Calligaris, o Capitão-Mor e o “Véi”. Não o escute desavisado. Os arranjos são delírios, as quebras rítmicas estão presentes com constância, uma hora galope, outra coco, uma reggae logo mais xote. Ê baião, jazz. E rock. Os ecos, Maniqué!
Outro disco do “galego” traz uma sequência interiorana que é a presença do mágico, do maravilhoso, da magia negra, das artes demoniais. Um disco temático pensado e produzido como um todo. Nada nele é aleatório, nada é emenda. Tudo é um sistema musical e poético, profundo e trabalhado de tal maneira que não há furo ou lacuna. Aliás me pergunto porque um artista desse talento e técnica, pesquisador e ensaísta musical encontra pouco espaço nas manifestações e eventos artísticos paraibanos. Procuro e não encontro os motivos. Será porque lhe falta moldura, figurino? Não pode ser. Será que é porque lhe registram pouca importância? Não sei bem, mas sei que o Capa Preta é um exemplo de trabalho, engenho e arte, fé e muita luta.