Tesserato: + 2 poemas de Calí Boreaz

Poemas de Calí Boreaz


geotectônica

existimos porque alguém
pensa em nós
não o contrário
.
mexer-se por dentro da cabeça
até a combustão
não te dá uma partícula de existência
pelo contrário — tira-te
quanto mais as coisas pensadas
existem
ao pensá-las
cada vez mais adias
a tua existência
inclusive se quiseres desaparecer
do mundo o que podes fazer é
pores-te num canto a pensar
só a pensar
/ solidão virá de solidificar
existências — outras
às vezes o passado é sólido
num presente pastoso
às vezes são os presentes paralelos que
demasiado concretamente
se assemelham aos telhados confusos
que olhamos da janela
num lugar oblíquo — íntimo — da cidade
quando olhar pela janela se torna propriamente
um lugar
e o porvir que às vezes perpendicula
ao posto burocrático
como um cínico regato, assim fugidiço
quantas vezes
não sentiste os pés levemente molhados de
um futuro que nunca existirá?
nunca ninguém pensou nisso nos estados
da imatéria?
também há gente estonteantemente rochosa
que não arreda pé de nos furar o ar respirável de
ofegante existência \
se quiseres desaparecer
do mundo o que podes fazer é
pores-te num canto a pensar
só a pensar, dizia eu
enquanto isso vais ver como vais
mirrando
e (sisifiana mente)
en volvendo a ti mesmo
chega uma hora em que vais evaporar
num interstelar sopro mudo
mudo ainda por cima:
ninguém vai re parar
é a chamada
— desistência
ao contrário, quanto mais
pensarem em ti mais
real serás mais
acesa tua constelação de partículas
— de existência
.
mas e quando duas pessoas estão
cada uma em seu canto
apenas pensando
uma na outra?
aí acontece o fenômeno buraco negro
(onde o tempo pára e o espaço rara)
nem existes
nem desapareces
insistes

janelitude

ei ei você
tu, sim
vem cá
apoia-te aqui
no parapeito deste poema
descansa um pouco
posso servir um café, queres?
espera, não vás
pode ser chá
chuva
chocolate
também prefiro
também me acalma
isso, apoeta-te aqui
não bate o sol aqui
aqui é sempre meio madrugada
meio lusco-fusco
sim, também estou em trânsito
embora esteja aqui à janela
mas repara ela não tem vidro
porque isto não é uma casa
isto é um poema
espreita aqui
vês? não há móveis
também não há portas
por que eu chamo isto de janela
então?
boa pergunta
então fica mais um pouco
pousa esse peso
desamarra o cabelo
oi : )
eu reparei logo em ti, sabes
estavas a caminhar com muita pressa de
nada
eu também ando assim
e depois às vezes entro num poema
há vários vazios por aí
nunca tinhas reparado?
é porque nunca tinhas parado
se não se parar como é que se vai reparar
está pronta a chuva
pronto
chuva e chocolate é receita certa de parança
dizes tu portanto que
se não há portas cá dentro
não pode isto ser uma janela pra fora
pois não existindo assim
o próprio dentro e o próprio fora
não haveria precisança de janela
o próprio conceito de janela se tornaria absurdo
sem o dentro e o fora que a condicionam
à função de ser janela
isso está tudo muito certo
do ponto de vista arquitetônico
mas já te disse — isto
não é arquitetura
isto é um poema
achas que só o ramo é que está na árvore?
a árvore toda ela está no ramo esquartejado
assim como um país inteiro está no exilado
e a vida toda se deixa conter num segundo de ponteiro
assim como o universo cabe no teu cabelo
assim desamarrado
então
não são só o dentro e o fora que têm uma janela
a janela também tem em si o dentro e o fora
mesmo que neste preciso momento
a gente já não saiba quem
está fora e quem
está dentro
e por isso é que isto
é a janela de um poema
serve apenas pra parar
pousar o peso
desamarrar o cabelo
descansar um pouco
tomar chuva e chocolate
e prestar atenção nos deuses que
não te prestam a menor atenção


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