O que é uma livraria?

Texto de Toinho Castro

Para Tarcísio Pereira e sua Livro 7

Ali pelos anos 80 do século passado a editora Brasiliense era a queridinha de todo jovem que gostava de ler. Com suas coleções Primeiros passos, Círculo de Letras e Cantadas literárias, a Brasiliense cobria um largo espectro de criatividade e curiosidade, com títulos de autores como William Burroughs, Caio Fernando Abreu, Walt Whitman e outros tantos que instigavam nossas mentes aceleradas pela juventude, pelos encontros e desencontros das ruas do Recife.

A coleção Primeiros Passos era o seguinte… um livrinho, pequeno mesmo. Cabia na palma da mão. O título principiava sempre com um O que é. O que é isso ou aquilo. Lembro bem do volume O que é ficção científica, escrito por Braulio Tavares, e de outro, O que é neologismo, escrito pela minha professora de Português na universidade, Nelly de Carvalho. Maior orgulho disso até hoje. Pois pego esse mote do O que é para dizer, com uma historinha, o que é uma livraria.

Em 1987, como tantas vezes, ao longo de tantos anos e histórias, eu entrei na Livro 7, uma super livraria que existia no Recife, fundada pelo mestre Tarcísio Pereira, em 1970, e que até fechar suas portas, em 2000, e que chegou a ostentar o título de maior livraria do Brasil. A Livro 7 evoca Borges e sua ideia de que o Paraíso seria uma biblioteca. A Livro 7 era, pois, o paraíso de nós, leitores, naquela Recife que carecia de mais livrarias e outras opções culturais. Era um centro, um vórtice que atraía toda gente ávida por cultura. E certamente era um imã para mim e meus amigos, ansiosos por ler o mundo naqueles livros, espalhados em tantas estantes.

E continuando a história, eis que entro na Livro 7 e lá está um recém lançado, cintilante, exemplar de On the road – Pé na estrada, de Jack Kerouac, editado na coleção Círculo de Letras, da Brasiliense, e traduzido por Eduardo Bueno e Antonio Bivar (Verdes vales do fim do mundo, outra leitura obrigatória). E eu, que já carregava Uivo, de Ginsberg, pra lá e pra cá, e não tirava os olhos do Folhas de folhas de relva, de Whitman (Também Brasiliense, na coleção Cantadas Literárias), não via a hora de adentrar às jornadas de Sal Paradise e Dean Moriarty pela América. Como nunca tinha a grana na hora de comprar um livro, tive que voltar algumas vezes à livraria até levá-lo pra casa. Sempre passava por lá pra conferir se o livro ainda me aguardava.

On the road entrou na minha vida pela Livro 7, e dela nunca mais saiu. A Livro 7 também nunca saiu da minha vida, como uma tatuagem espiritual ou intelectual, vai saber… Nem mesmo quando encerrou suas atividades, quando eu já morava no Rio de Janeiro.

Como sempre, nessas histórias, o tempo passa, carrega coisas e pessoas pra cima e pra baixo, apaga algumas memórias e torna outras agudas. Em 2007, retornando ao Recife, numa viagem de trabalho, levei o On the road debaixo do braço, pra ler no avião e nas noites de hotel. E nessa mesma viagem aconteceu o inesperado de conhecer Raquel, minha companheira, parceira de vida até hoje. Conheci Raquel e travamos afinidades, passeamos pela noite de Olinda, com nossos amigos Roberval e Zé José.

Na noite da minha volta ao Rio, ela e Roberval foram ao aeroporto comigo, curtir aquelas últimas horas juntos no Recife. Chegamos cedo e ficamos a conversar… ali mesmo, nas mesinhas do aeroporto, peguei meu exemplar de On the road, escrevi uma dedicatória, e entreguei a Raquel. Acho que foi um gesto de ficar com ela, de estar com ela de alguma maneira. Não sabíamos, ali, se voltaríamos a nos encontrar. Entreguei-lhe um livro que comprei na Livro 7, no exato ano em que ela nasceu Veja só! Um livro que foi lido e relido, viajou pra tantos lugares e estava surrado de tantas páginas viradas e sonhadas. Um livro que perambulou de 1987 até 2007, para chegar às mãos da mulher que me proporcionou uma vida nova, que se renova todas os dias ao lado dela.

Então, isso é o que é uma livraria. Não é uma loja, um comércio. É uma cadeia de acontecimentos, uma espiral de eventos e encontros, sempre ascendente e inesperada, que culmina em felicidades. Acabou que Raquel veio morar comigo no Rio e trouxe o livro pra junto de mim outra vez. Hoje estamos os três, mais os gatos e os outros tantos livros, alguns herdados da Livro 7, todos juntos no nosso lar em Vila Isabel. E On the road está aqui, aberto ao meu lado, com sua dedicatória de 2007 e uma história que nos leva pela história do Recife e de uma livraria que foi pioneira em tantas coisas, capitaneada por um homem de coração e horizontes abertos.


Tarcísio nos deixou ontem à noite, vitimado pelo Covid, e por esse abandono que as almas sensíveis, como ele, passam nesse país de desmandos, cada vez mais arruinado. Mas hoje não quero ver Tarcísio como vítima, e sim como protagonista de uma aventura generosa e fértil, que alumia o coração vibrante de quem passou pela calçada da Livro 7, não resistiu e entrou… e nunca mais saiu.


1 comentário

  1. Q texto foda, passei por viagens parecidas a partir da livro sete. Sem falar q agente podia ler os livros ali mesmo nos banquinhos e os vendedores não se incomodavam, era mesmo uma inclusão para quem tinha interesse em leitura e não tinha grana.

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