Texto de Toinho Castro
Para Eugenio Conolly
Eu era criança e minha irmã devia ter seus 16 pra 17 anos. Era ali os fins dos anos 70 e ela tinha uma turma ótima, muito animada. Todos jovens e alegres, pelos menos pra mim, que observava tudo de dentro da minha infância. Como em toda turma, havia suas tensões, seus amores, correspondidos ou não, histórias mirabolantes, como se todos ali se conhecessem desde sempre e compartilhariam a vida até o fim. E o fim era algo tão distante, tão longe no horizonte, para aqueles jovens destemidos, imortais, inspirados e volúveis. O fim era distante demais. Perto mesmo era a praia, era Itamaracá, os bares do Recife, as noites de violões e canções madrugada adentro, na casa de um, de outro, de qualquer um que a eles se juntasse.
Era comum irem lá pra casa. Meus pais sempre foram hospitaleiros, sempre gostaram da casa cheia, sempre gostaram e receberam muito bem nossas amizades. Essa turma da minha irmã, dos meus irmãos, gostava muito de ir lá pra casa. Sentiam-se à vontade no nosso apartamento no edifício Inês, na Pampulha. Espalhavam-se pelo sofá, no chão da sala, com aquele piso que já não existe mais, que ninguém mais quer em casa. Iam e vinha da cozinha, abriam a geladeira sem cerimônia, porque nosso apartamento era uma extensão de suas casa. Sentiam-se seguros e alegres lá.
Tonhão, alto e bonitão, exímio violonista já naquela idade, puxava as canções que se cantavam naqueles tempos, com sua voz grave e bonita. E geral acompanhava, entre risos e cerveja e petiscos. Chico Buarque, MPB4, Milton Nascimento, Elis Regina, Clara Nunes… era os anos 70, o país sob a ditadura militar e nossa casa era um flanco dessa resistência simples, miúda, talvez, mas cheia de esperança que aquilo tudo ia acabar cantando aquelas músicas. Bem… um dia acabou.
Numa dessas farras, que avançava pelas altas horas, o sono pegou o menino que eu era então. Lá do quarto, sonolento, eu escutava a festa, resistindo a adormecer para não perder nada. Coisa de criança em casa animada, né?!
No apartamento da gente tinha uma espécie de entroncamento, quando você saía da sala, que dava para todos os cômodos. Dali você podia ir para a cozinha, o banheiros, os quartos… Passando por ali, talvez para pegar uma bebida na geladeira, ou ir no banheiro, Eugenio me viu no quarto e veio me dar atenção. Coisa que nem todos faziam com uma criança naquela época.
Eugenio era um dos grandes amigos da minha irmão. Frequentador querido demais da nossa casa. Meus pais adoravam ele. Eu adorava Eugenio. Ele era leve, simpático, alto, gentil, caloroso e engraçado. Era somente um rapaz, mas já era tudo isso. Ele entrou no quarto, sentou-se ao lado da minha cama e pôs-se a conversar comigo. Naquela idade eu estava aprendendo a gostar de rock e acho que havia acabado de descobrir o Supertramp. Eugenio pegou minha cópia do Crime of the century, um disco que a banda havia lançado em 1974 e que eu adorava. Nem lembro como tinha esse disco lá em casa… se meus pais compraram, se meus irmãos, se apareceu lá por mágica. Mas era um dos primeiros discos do viria a ser minha coleção de rock, que me acompanhou e me protegeu de tudo, até que deixei o Recife para morar no Rio, sem trazê-la comigo.
Talvez Eugenio tenha conversado comigo sobre o Supertramp e sobre os discos e bandas que ele gostava por alguns minutos. A mim, pareceram longas horas de uma delicada atenção. Ter tido o cuidado, e vontade, de sentar ali comigo e me dar atenção genuína e ouvir minhas ingênuas opiniões de jovem aprendiz do rock’n’roll, é algo que hoje me comove.
Em algum momento a festa o convocou de volta. E acabei por adormecer, com o Crime of the century junto a mim e os sons alegres daquele encontro de jovens amigos, embalando essa adorável transição entre a vigília e o sono.
Como em toda turma, os caminhos cruzados eventualmente se desmancham, vidas segue traçados inesperados e as pessoas se separam. Minha irmã foi pra Brasília ao fim da faculdade, Eugenio casou e cada foi levando a vida que se apresentava, conquistada ou não. Perdi, por consequência, o contato com todos. Afinal, eram amigos da minha irmã.
O tempo passou e, como diz minha mãe, levou tudo. Mas nos últimos anos, por conta da internet das redes sociais, minha irmã refez alguns desses encontros, recuperando diálogos, lembranças e construindo algo novo, certamente. Um desses reencontros foi Eugênio…. nem acreditei e o adicionei também no Instagram. Entre lies e alguma mensagem, pouco trocamos, mas pude acompanhar sua vida em frames, em flashes. E mesmo com a distância dos espaços e dos tempos, mesmo tendo sido somente uma criança, que acompanhava com os olhos brilhando os amigos dos irmãos. Bem, Eugenio era, mesmo que nem soubesse, meu amigo.
Nesse fim de semana soube que Eugenio morreu, subitamente. Inesperadamente.
Que golpe na minha irmã. Dia desses falou com ele. Dia desses marcaram de se rever quando tudo isso, a pandemia e essa ascensão da maldade, acabasse (porque vai acabar!). Mas não deu tempo. Eu tinha essa esperança também de revê-lo e dizer: Lembra aquela noite em que você me deu atenção e conversou comigo sobre rock?! Às vezes você compartilha somente uma coisa com uma pessoa, mas isso é suficiente pra te ensinar coisas que você não vai esquecer, e que vão constituir algo que faz de você o que você é.
Sempre lembro dessa turma, e de Eugenio, quando escuto uma canção da Laurie Anderson, chamada Strange Angels.
Well it was one of those days larger than life
When your friends came to dinner
And they stayed the night
And then they cleaned out the refrigerator
They ate everything in sight
And then they stayed up in the living room
And they cried all night
Strange angels – singing just for me
Old stories – they’re haunting me
This is nothing like I thought it would be.
Toinho, vc sempre vendo, escrevedo sobre o lado bom das coisas. Das pessoas!
E como escreve bonito!!!
obrigado, zidi. essas passagens da vida são duras. mas sigamos fazendo valer a memória de quem nos marcou.