Texto de Toinho Castro —
Voar é foda, né?!
A primeira vez que viajei de avião, eu era pequeno. Foi com meu pai. Subimos as escadas de um Boeing 727 no Recife, para um voo rumo a Natal, que provavelmente durou menos que 30 minutos e que me apareceu uma eternidade acima das nuvens. Era uma viagem que fazíamos frequentemente de ônibus, pela empresa Nápoles e que, na época, talvez durasse umas cinco horas. Não sei a razão dessa viagem de avião, eu e meu pai. Eu era pequeno. Talvez ele quisesse me proporcionar essa curta aventura. Enorme, porém.
Jamais esquecerei as linhas das estradas, como se eu estivesse olhando num mapa. Nem a múltipla tonalidade dos verdes das matas, e das cidades, maiores ou menores, se insurgindo da terra. Aglomerados de gentes, casas, postes, desejos, vidas inteiras vividas ali, naquele pequenos núcleos, que do alto me pareciam mais neurônios. Acho que, então, eu não sabia o que era um neurônio e essa imagem me vem agora, enquanto escrevo. Mas certamente as vi, as cidades, como afloramentos, olhos d’água brotando e se espalhando. Hoje comparamos a uma espécie de doença, se espalhando e consumindo a terra, moendo a terra para produzir lixo. Do alto assim, não se vê pessoas, mas o efeito delas no mundo. Mas isso é outro assunto.
Aqui, quero falar de voar, dessa visão dos cursos dos rios lá embaixo, serpenteando e reluzindo, espelhos do sol e da lua. De passar entre as nuvens, de ver suas copas flocadas, como de árvores. Eu sempre fui fascinado por nuvens. Seus nomes me fascinavam… Cumulus, Stratos, Cirrus! Vê-las da perspectiva do chão era já incrível e lá estava eu, voando entre elas, acima delas. E acima de mim, alguns quilômetros acima de mim, a gradação da atmosfera, desfazendo rumo ao espaço exterior. Naquela época, voar de avião era algo um tanto solene. Desde a emissão das passagem, belos carnês preenchidos com a letra caprichosa da moça do balcão do aeroporto, os procedimentos de segurança e o fato, triste, de que não podíamos abrir as janelas. Tudo isso somava-se em ondas de ansiedade que se acumulavam no coração, acelerado, enquanto o avião corria na pista até perder o contato das rodas com o chão. Ali, havia uma suspensão do mundo, e eu realizava um sonho do homem das cavernas. Pensei: Voar então é isso…
Não, não é isso.
Voar é com os pássaros. Aqui me aproprio do título dado no Brasil ao filme Brewster McCloud (1970), do diretor americano Robert Altman. Devo essa a Altman. Esse filme invadiu meu imaginário e era um dos meus títulos prediletos das noites e madrugadas na TV. Ativou sonhos, de voar e de fazer filmes. Voar é com os pássaros virou esse dito que define a situação em que a gente vive, de seres atados à terra. Não, não voamos. Viajar de avião, planar de asa delta e veículos afins, não é voar. Voar é com os pássaros. Mesmo as borboletas, parecem mais levadas pelo ar que qualquer coisa.
Outro dia estava assistindo ao filme Em busca da Terra do Nunca (Finding Neverland, de 2004), que conta a história da amizade de J. M. Barrie com Sylvia Llewelyn Davies e seus filhos. Dessa amizade, da relação de afeto do escritor com as crianças, nasceu o clássico Peter Pan. Acompanhamos essa criação no filme, e numa das cenas, um ensaio para a estreia da peça (Sim, Peter Pan foi primeiro uma peça, e só depois foi convertido em livro), os filhos de Sylvia brincam no palco e experimentam ser erguidos pelas cordas que simulam o voo das personagens. Quando a peça é, enfim, exibida, essa, a cena do voo, é o encantamento. Lembro do mesmo encantamento ao ler o livro, Wendy e seus irmãos, e Peter, voando pela janela para a Terra do Nunca. A janela do meu quarto era basculante e eu jamais poderia alçar voo através dela. Rever esse filme e reler Peter Pan, me levaram a escrever esse texto E a vontade de voar, que às vezes dá!
Muitas são as fantasias do voo. Sonhar voando é a definição do ato de sonhar. Buscar o voo, vencer a gravidade, fazer aviõezinhos de papel e construir máquinas complexas, poderosas e caras, somente para se erguer acima das coisas… e ainda assim saber que não poderemos, jamais, bater os braços e sair cruzando os céus, com as pessoas lá embaixo, miúdas, formigas atarefadas, correndo pelas ruas, pelos campos, e apontando, maravilhadas, os dedos em nossas direção.
Voar é com os pássaros.
Quando me levou naquele 727, rumo a Natal, meu pai não fazia ideia do que estava me proporcionando. E acho que nunca disse isso a ele.
Que lindo, Toinho!
O primeiro voo é mesmo inesquecível. Fiz o meu mais velho e talvez por isso tenha sido mais tenso no início, mas não deixou de ser uma experiência incrível.