Meu primeiro grande amor

Texto de Toinho Castro


Meu primeiro grande amor foi a música eletrônica. Certa vez, aos 12 ou 13 anos, menos ou mais, não sei, acordei de uma soneca pós-almoço, na casa do meu primo, Carlos Henrique, em Natal, no Rio Grande do Norte, ao som de Autobahn, do Kraftwerk. Foi como se eu acordasse dentro de um sonho. Foi como se, ao acordar, algo também despertasse em mim, como se eu tivesse ido dormir uma pessoa e acordado outra. Acho que foi a primeira vez que eu senti o que senti, e acho que também a última. Nunca mais senti nada assim, ouvindo qualquer música, por mais que encantasse. E muita, muita coisa de grande beleza escutei depois disso. Músicas que até hoje carrego comigo. Mas o que aconteceu ali, com Autobhan, foi uma iluminação. Na medida em que um menino de 12 ou 13 anos pode ter uma iluminação.

Naquela época, naquela geografia terceiro mundista provinciana e periférica em que vivíamos, era difícil, pois, conseguir uma cópia em vinil do disco Autobahn, que até então não havia sido lançado no Brasil… Na verdade acabei de pesquisar e consta, na Discogs, a informação de uma edição brasileira, com aquele belíssimo selo Vertigo, de 1975. Olha só! Mas pra mim, moleque, morando na Imbiribeira, era como se não existisse. Era uma coisa de um outro planeta.

Mas… na loja A Modinha, lá no centro do Recife, rua Nova, talvez, tinha um exemplar, exposto na parede de discos atrás do balcão de atendimento, do Trans-Europe Express, do mesmo Kraftwerk. Lembro de voltar à loja com minha irmã (Na primeira vez que vi devo ter ido com minha mãe, num de seus passeios pelo centro), porque eu não tinha, então, idade para ir ao centro da cidade sozinho. Apontei para o disco e minha irmã pediu pra ouvir. Senti certo embaraço quando aquela música estranha soou muito alta na loja, e as pessoas ali olharam com aquela cara recifense de “mais o que diabos é isso?!”. Rapidamente confirmei que era aquilo mesmo que eu queria, aquela música esquisita, metálica, mínima, tão pouco melódica , como que saída de… de uma máquina. Eu havia me tornado oficialmente o esquisito da família, quando, pra mim, esquisito era não enxergar a beleza naquilo.

Escrevendo agora, lembro que, antes disso, comprei um compacto do Kraftwerk no supermercado MiniPreço, em Natal mesmo, com The Model de um lado e Spacelab do outro, ambas do disco The Man Machine, de 1978, que foi o segundo disco que comprei (com o dinheiro da minha mãe, claro!), provavelmente numa loja que tinha lá no bairro de Afogados, a Rubi Discos, que tinha um moço muito simpático. Com uma paciência grande com aquele menino que dava seus primeiros passos naquelas sonoridades, ou mesmo no mundo da música. Lembro que falávamos do Kraftwerk e outras coisas eletrônicas ou progressivas, e ele me falou do Giorgio Moroder, do LP From here to eternity, que estava lá, na parede de discos por trás do balcão, que toda loja de discos tinha então. Comprei o compacto do Moroder, com From here to eternity de um lado e Utopia – Me Giorgio, no lado B.

Mas eu ouvia mesmo era o Kraftwerk, e aos poucos ia adquirindo novos discos, como o Radio-Activity e o Computer World. Ouvir esses discos era como observar uma molécula de DNA. Era um código fonte. Paralelo a isso eu ia abrindo outra frentes, outra variáveis… a meditação eletrônica do também alemão Tangerine Dream, as elaborações eruditas do japonês Isao Tomita, o francês Jean Michel Jarre com seus primeiros três discos (Oxigene, Equinox e Magnetic fields) e, claro, Wendy Carlos e seu pioneirismo de Switched-On Bach

Muita gente torce o nariz, hoje, para um sujeito como o Jean-Michel Jarre ou mesmo Tomita, por serem comerciais, pastiche, sei lá. Vão dizer que eu deveria ter escutado algum artista obscuro que só lançou um disco e desapareceu na névoa dos anos 70. Mas não ligo, esses artistas me ensinaram muito como apreciar a música eletrônica e buscar por ela nos caminhos confusos do pop e também do erudito. Lembro das tarde que passei no sebo do Humberto, um ponto clássico da comunidade rock’n’roll recifense. Se você buscava um disco estranho, raro, difícil de encontrar, Humberto era o cara. Foi lá que dei com o Zeit, de 1972, álbum duplo monolítico do Tangerine Dream. Nesse dia eu tinha um dinheirinho e levei pra casa. Hoje adorna a casa do meu amigo Pedro, que herdou meus discos que deixei no Recife.

A música eletrônica invadiu a música pop, e hoje em tudo tem a natureza eletrônica, por baixo, no meio ou por cima. Antigamente era uma coisa de iniciados, que achavam saber de algo que pouca gente sabia. Hoje tá mundo, tanto melhor! Da Disco Music ao Pós-punk, passando pela multiplicação da tendências regionais, como o nosso tecnobrega, a música eletrônica evoluiu, se popularizou e dominou as pistas de dança mundo afora. Com Giorgio Moroder produzindo Donna Summer, o New Order emergindo das batidas sombrias do Joy Division, Brian Eno com sua Ambiente Music e tantas outras experiências, mais pops ou experimentais, a música eletrônica gerou sua própria árvore genealógica de bandas e músicos, populares ou eruditos, que cruzaram seus fazeres. E eu, um amante apaixonado, ouvi muito de tudo, num exercício cotidiano de descobertas.

Amo música, como um todo. Escuto muita coisa, muitos estilos, tendências, de gerações diferentes. Me dedica a conhecer coisas novas constantemente e vibro com as descobertas. Mas a música eletrônica sempre me será mais íntima, sempre mexe comigo de um jeito diferente, mais profundo. Porque evoca aquela tarde lá em Natal, em que escutei o Autobahn e meu jeito de olhar o mundo mudou de maneira irreversível. Essa pessoa que você conhece, existe porque uns alemães nascidos no pós-guerra escreveram uma música incrível de 22 minutos sobre uma viagem numa autoestrada, sonhando sonhos elétricos. Imaginando uma modernidade das máquinas e de um mundo fluido, viajante, sem fronteiras. Uma música que nos põe em constante movimento.

Wir fahren, fahren, fahren auf der Autobahn

Como eu amo essa música. Como jamais esquecerei esse encontro. Tem gente que passa a vida tentando reviver ou recuperar uma sensação, um sentimento de uma época ou de uma experiência. Eu revivo esse sentimento sempre que escuto Autobahn, e vivo nele minha própria história de viagem pelos tantos caminhos da música eletrônica que essa audição me proporciona. Minha luta cotidiana é de não perder esse encantamento, esse maravilhamento. De sempre me surpreender ao escutá-la, como se tivesse acabado de acordar.


1 comentário

  1. É isso aí, primo.
    Lembro perfeitamente desse episódio, que representou a sua descoberta do Kraftwerk. Mais tarde, chegaríamos a ver, numa das lojas de discos do Recife (acho que no Shopping Center Recife), o disco que os caras lançaram contendo a trilha-sonora do Tour de France. Raridade!
    Sinto falta daqueles papos intermináveis que tínhamos sobre Rock, partilhando as novidades garimpadas (sua chegada em Natal com o The Wall do Floyd representou um acontecimento), para espanto dos meus irmãos e dos seus, que nunca foram tão entusiastas assim do tema.
    Valeu demais a lembrança. Voltei no tempo, cara. Abração!

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