Texto de Luiz Henriques Neto
“Jasão e os Argonautas”, de 1963, está na Netflix. Provavelmente a obra-prima de Ray Harrihausen, uma casa de efeitos especiais de um homem só. Inacreditavelmente, depois de criar o primeiro dinossauro gigante destruindo cidades em 1953 em “O Monstro do Mar” e os discos voadores com bordas rotativas de “A Invasão dos Discos Voadores”, descobriu que não havia muita demanda para criaturas animadas em filmes de alto orçamento e os com pouca grana preferiam pagar 2 tostões para dar vida a “The Giant Claw” porque o público infanto-juvenil que eles almejavam não ligava tanto – pensavam os produtores – para a qualidade.
O que deu impulso à carreira do Harrihausen foi seu encontro com um jovem produtor, Charles H. Schneer, que amealhou fundos para fitas que, ainda que de baixo orçamento, se submetiam completamente às vontades do sujeito com infinita paciência para modelar e animar quadro a quadro tudo que era tipo de criatura que se pudesse imaginar. A primeira parceria dos dois, “Simbad e a Princesa”, esperou por 11 meses Harrihausen completar seus trabalhos, mas estourou a bilheteria e abriu caminho para o laborioso artesão dar vazão às suas fantasias, que em sua maioria envolviam mitologia grega. Daí, em 1963, já com mais dinheiro no bolso, partiram para “Jasão e os Argonautas”. E botaram a casa abaixo.
A fita tem atores melhores, miniaturas melhores e animações melhores. Se a luta do Simbad contra um esqueleto em “Simbad e a Princesa” deixou o público de queixo caído, que tal então uma luta contra SETE esqueletos simultaneamente? Harrihausen inventou um novo processo de animação, que separava atores dos cenários através de iluminação por vapor de sódio, o que evitava ter que pintar quadro a quadro em um negativo de 35 mm os viventes de movendo, e que permitia incluir seus modelos no meio dos personagens e dos fundos. Ainda assim, assistindo à cena abaixo, as explicações que eu acho mais críveis para sua confecção são a) pacto com o Diabo b) magia negra c) viagem no tempo para roubar um computador.
Os esqueletos seguidamente cruzam espadas com os argonautas – na verdade, a coreografia da luta é extremamente empolgante e bem urdida para a época. Os esqueletos mostram jogo de pés para manter o equilíbro enquanto pelejam. A sombra deles é projetada na mesma direção que as dos argonautas. As cenas têm cortes e mudam de ângulo NO MEIO DE UM GOLPE. E ainda por cima têm o fabuloso movimento extremamente definido da animação de miniaturas quadro a quadro.
O Parque Jurássico abriu as porteiras para computação gráfica quando os técnicos, nos estudos preliminares, desenvolveram um programinha que dava borrão de movimento aos personagens informatizados. Filmes rodam a 24 quadros por segundo e em 1/24 de segundo algo que se mova rapidamente vai parecer um borrão no quadro. Nossos olhos também enxergam a essa velocidade. A animação quadro a quadro com bonequinhos é feita com fotos deles parados, então os movimentos parecem nítidos demais, uma experiência bem diferente do que estamos acostumados a ver. Por isso a animação por computador se tornou tão difundida depois dos dinossauros do Spielberg.
Só que depois que passa a onda de ver monstros hiper-realistas se mexendo, quem cresceu, como eu, vendo esses seres animados quadro a quadro, percebe que essa movimentação hiperdefinida em verdade dá a esses entes uma sensação de irrealidade onírica. Claramente essas criaturas são abominações aos olhos de Deus, antinaturais e nascidas em nossos mais infantis pesadelos. Em “Jasão e os Argonautas”, por exemplo, os primeiros movimentos de Talos em meio à soturnez das estátuas gigantes espalhadas por uma ilha desértica e abandonada são arrepiantemente fantasmagóricos. E remetem aos clássicos pesadelos de monstros gigantes perseguindo VOCÊ em meio a uma cidade. E, recentemente, descobri que não sou só eu que gosta desse efeito sobrenatural da movimentação na animação quadro a quadro. Vários filmes mais recentes usaram computação gráfica sem aplicar borrão justamente em busca dessa atmosfera inquietante.
Tudo isso só pra recomendar que, ei, não percam “Jasão e os Argonautas” na Netflix. A imagem está a mais bonita que eu já vi desse filme – eu consigo ver as harpias direito, o que sempre me foi impossível em 20 polegadas de tevê de tubo na Sessão da Tarde ou em VHS (ou em 32 polegadas e DVD). Harpias, aliás, animadas enquanto voam lutando contra uma rede (!!!!!) E, abaixo, o melhor efeito especial de todos os tempos, pra quem ainda não viu. Corram porque todos sabemos que grandes filmes somem da Netflix mesmo quando parece que ninguém se importaria em levá-los para outra plataforma de estrímem.
Já coloquei na minha lista da Netflix. Tenho a vaga impressão de ter visto no tubo há décadas. Obrigado pelo ótimo texto e pela dica. Seguirei a revista daqui para a frente.