As praias estão desertas — A poesia de Kaio Phelipe

Poesia chegando nas águas da Revista Kuruma’tá. É o nosso inbox mágico, que sempre nos surpreende com criatividade e talento.

Kaio Phelipe é do Rio de Janeiro e tem 24 anos. É autor dos livros Não existe pecado no lugar de onde eu vim, Para o homem descansando ao meu lado e Como cuidar de um girassol.


Visita

Da cozinha, vem gritando o meu nome
com urgência de descoberta na voz
e nas mãos traz uma colher
cheia de geleia caseira de cajá
pra que eu prove pela primeira vez.

O cheiro doce inebria os cômodos da casa
comia muito disso na infância, diz
e reserva uma parte para que eu leve comigo
e me sirva no desjejum seguinte.

Prolongo a minha estadia e depois a minha partida
o máximo que posso sem parecer ridículo
paro alguns segundos no hall de entrada
e o namoro onze andares acima
dessa vez com a mão estendida
como quem diz que me ama na língua de surdos e mudos.

No meu embarque, os últimos vagalumes
do mundo me observam no escuro da estação de trem
encaram minha forma igualmente animalesca
carne provisória e esfinge
meu coração-torniquete de término e lamúria.


E agora, homem?

Ainda vivo do que a gente foi nessa rua
depois disso nada mais floresceu
o Centro fica mais feio a cada hora
antes havia um certo charme nisso
agora a feiura alcança patamares absurdos
quase tudo deserto
cheiros esquisitos
filas enormes de gente passando fome
quase todos negros
e não importa quantos políticos a gente desmascare
há sempre um que está por vir.

Queimamos a faixa amarela
que delimita o fim do mundo
e agora, homem?
Nós que testemunhamos a existência
das árvores, os animais e as salas de teatro
nossa revolta que ia ser transformada em um país melhor
mas o país foi por ralo abaixo
como o gozo de um homem no chuveiro e às pressas.

Não somos mais os meninos sonhadores
elevando o amor ao máximo
hoje a gente transa sempre pela primeira vez
com algum menino bonito esculpido entre ferros de academia
como uma máquina
que só fala de si e do intercâmbio em Dublin
e a beleza não era para ser um defeito
hoje a gente senta em um desses bares hypados da Tijuca
em ruas que não dão vontade de entrar
hoje a gente desperdiça dois corações fartos
em conversas chatas sobre propósitos de vida falhos
que a gente conversa para não ficar fora da curva
uma curva cada noite mais alinhada.

Tudo faz de mim alguém que provavelmente não irá vencer
mas enquanto não me envergonho disso
é urgente que eu diga a você que tenho saudades
e a Rua 20 de Abril está horrível
como Torquato Neto disse: aqui não tem mais nada da gente
a literatura é a única que me abraça quando nada mais funciona [e já não é o bastante].

Quando cruzei a 20 de Abril
eu queria que o menino ao meu lado fosse você
e queria presenciar seu rosto
quando se deparasse com o apocalipse
entre o Hospital Souza Aguiar e a Casa de Swing Mistura Certa
e queria saber quais são suas pontuações
a respeito da aniquilação de toda mocidade e fé que um dia tivemos.


Bichos raros

Os dias que não nos falamos
não valem os cacos de vidro
o sangue pingado pela casa
faço planos de vingança
me masturbo pensando em outro
venço as batalhas sozinho
invalido quando estivemos juntos
e depois me arrependo
fico sentado bem vestido
acompanho o final da novela
vinho em uma mão caso eu te esqueça
e celular na outra caso você ligue
quando o tranco aperta
e sua saudade nos arma um encontro
vou forte feito um touro
com um sorriso de quem venceu
porém falso e estagnado
abstêmico do cheiro do teu sexo
de preparar sua roupa pela manhã
envergonhado corro ao banheiro e me masturbo
tento expurgar o desejo que sinto
mas falho
e morro prematuro como um louva-a-deus.


Os perdedores

Suspenderam a fabricação de biscoitos Globo
as praias estão vazias
assim não há como saber o que pensam os homens
que enfrentam o horizonte
ocasião favorável somente para as infiltrações nas paredes
no lado matéria dura, o mesmo cheiro de mofo e ameaça em tudo
o cenário é cadavérico
plantas de plástico se conservam cobertas de poeira
e eu sei que se tivesse te encontrado naquele sábado a noite
nada disso teria acontecido
toda estação acho que minha rosa do deserto vai morrer na próxima
estou de malas prontas
de acordo com meu tio, o homem mais sensato que já conheci
só é possível ser feliz até os trinta e cinco
para mim faltam alguns anos
para você um pouco menos
já quis que fosse verdade que não há tempo para perder
com memórias
recriar o mundo através de narrativas modernas
precisar de outros inícios
o que não quer dizer adiar a época das tangerinas
abandonar alguém é a verdadeira desventura
perder a cumplicidade também
mas aí a minha ignorância e a minha impaciência

o que mais sei sobre o dia de hoje
15 de maio
é que fundaram a expectativa em 92
não tenho memórias desse ano
se vim até aqui,
foi graças à crise híbrida,
a educação pela tragédia
mas veja que não estou muito bem
você achou que eu ficaria tranquilo no mundo
agora veja com seus olhos
na vida a gente comete dois ou três erros grandes
e temos dois ou três amores inesquecíveis
então faça as contas
se eu fosse fiel às minhas promessas
teria visto o extraordinário
teria sido o paraíso, não só
chegado perto
o primeiro dia de saudade é o mais tranquilo
durmo a maior parte do tempo
mesmo que já tenha perdido todas as possibilidades de descanso
daqui a nove luas, não sei
não há mais nada que mude radicalmente minha vida
para acariciar meu coração e expurgar meus fluidos,
restaram edições G Magazine 2005 e poesias de Anderson Herzer.


Kaio Phelipe é do Rio de Janeiro e tem 24 anos. É autor dos livros Não existe pecado no lugar de onde eu vim, Para o homem descansando ao meu lado e Como cuidar de um girassol.


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