Tempo sem cruz | Poemas de Flora Miguel Revista Kuruma'tá, 29 de junho de 20221 de julho de 2022 Conexões maravilhosas. De São Paulo, onde passava uns dias, meu amigo Jorge LZ me fez essa ponte generosa com a poeta Flora Miguel, e com sua poesia. Hoje a Kuruma’tá publica, com alegria, cinco poema do livro Tempo sem cruz, que Flora lançou recentemente, pela Editora Primata. Nestes poemas, as formas de contragolpear o bloqueio do futuro carregam uma espécie de ambivalência produtiva, estratégia lírica desfolhada em uma bandeira ao mesmo tempo política e afetiva. Se a consciência dos limites (os nossos e os do mundo) se impõem em números e dados objetivos, a força das coisas miúdas também é reconhecida, entre outras coisas, na elegância guerreira das formigas: “folha que é escudo!/ graveto que é lança!”. Da apresentação de Andrei Reinajornalista de arte e cultura e mestrandoem sociologia na USP, com pesquisa sobre a teoria crítica brasileira. tempo sem cruz alguém te liga na manhãzinhauma voz de plástico derretidoafônicachega até a sua orelha e você pensa em Olgaem Priscila em LuandaTânia Bruna MariSandra você pensa em toda arevolução socialque é um útero dizendonãodizendonão agoradizendo shiudizendo quando como e por quedizendo escuta,apesar da guerrahá maneirasde sangrar e ainda que você tenha lido que foram identificados770 óbitos maternos com causa básicaabortono SIM de 2006 a 2015que se somados aos 220 óbitos que têm o abortocomo uma das causas mencionadasrepresentariam um acréscimo de aprox. 30%no total de óbitos associados ao abortono mesmo períodofora a subnotificação,você pensa mais uma vivarenova votos na causa[errada?]quer chorarquer sonharacordada refugiados sentir a praça pelos pésdiscutir Tolstói com as mãos também desejamos terra terra é carne que quantomais se repartemais se tem das nuvensnenhuma palavra:pacto de cumplicidade película de horror nessa parte arrancada se senta um gatoronrona e aprendo [o diabo é uma mulherchamada Siri e tem sempre tempopara o conhecimento]que gatos domésticosronronam em frequência máxima de 30,2hze que diferentemente do miadoo ronronar produz um som de timbre graveaudível somente a distâncias curtas nessa parte rasgadaà faca afiadacachorros fazem festas esse trecho esse treco ocoé pista para uma moscaque depois de toda vida dedicada à transmutação envelhece como hospedeira de agentes patogênicoscomo qualquer um de nós nesse vão se chocam todas as quinasenfiam dedos fincam,segurose inseguros,os dias talvez não seja a única a sentira confusa presença do que é ausenteinstrumento desafinado aposentadolidando com seus ruídos formiga 1estender a cangaintervirno trajeto das formigas por entre as dobrasde chitatravar batalhaminimalista 2A estudante de Pós-Doutorado em Entomologia do Instituto Nacional de Pesquisa da Biodiversidade Florestal, Luana C., foi responsável por um estudo inédito que monitora o impacto de uma fábrica têxtil de larga escala na fauna das formigas 3desde a infância Luana C.foi extremamente sensível fazia dança aeróbica e clássica,brincava sempre de teatro– atriz é porvirdesenhava histórias sobreseres fantásticosem pequenos recortesde papel furta-cor a cada ocasião considerada especialcompunha música próprialetra e melodiae se fazia um dia de sol e calorcoreografava a criação costumava dizer que seria cientistamesmo com a desenvoltura para as artesem pura combustão passava horas observando as galinhasdo quintalconversava piu, piu, piáno balanço de pneupendurado em enorme tronco de árvore anotava suas consideraçõesnum grande caderno de folhas mistas tonsde terra e céue encadernação feita pela mãecom maquinário próprioinstalado na lavanderia da famíliadas formigas,ao interagir forçosamentemas ainda com o notório embaraço,admirava a elegância:folha que é escudo!graveto que é lança! 4Luana C. morreujá tem sete anoso rim perfuradopela bala do milicopolicializado morreu e eu a procuroprocuro e a reinventoque a atriz merece o melhorpapeltons de terra e céupneu nunca de motoparada em nenhuma autopistaprêmio Nobel:melhor cientista 5a gente sem escudonem lança sem cortina sem regente o furo agudo estridenteno canto da nossa barriga a polícia mata a gentecomo a gente amassa formiga um faquir no viaduto na cama de pedras pontiagudaso peito já rasgadonão tem mistério em sorrirtamanduáespantar pombos cerrar punhosver no que dá magia é a fumaça da motoandando com a motoa moto em zigue zaguea troco de quêninguémsabe a moto,palito de fósfororiscando sua noite com nuvens [O viaduto se transforma num céu. Sinos tocam.] feito o arco de luz que acompanhaa porta da sala batendo na caracalacomo quem jazcantacomo quem chora no dia em que eu vim emboranão tinha nada demais Flora Miguel é jornalista, trabalhadora da cultura, poeta. Tem textos esparramados por veículos literários no Brasil, Portugal e México. A Leia MulheresLeituraPoesiaPoesia brasileira