A crítica como dádiva para a profanação do papão da crítica

Texto de Ricardo Seiça Salgado

Membro do grupo informal auto-organizado Crítica de Fuga, para o Festival e Laboratório Internacional de Artes Performativas – Linha de Fuga | 12 Set. a 4 Out. 2020, em Coimbra.


Fotografia de Augusto Fernandes

A crítica das artes performativas tornou-se num papão na cabeça do senso comum, pelo menos no seio das artes performativas: existe e não existe; quer-se-lhe mal mas anseia-se a sua presença; teme-se e deseja-se. A palavra parece contaminada, repleta de paradoxos e geradora de medo. Perdeu-se a crítica por razões económicas e, de certa forma, por razões políticas. Talvez tenha acontecido isto por se ter tornado rara e pela ênfase da sua dimensão valorativa, comprometendo uma ética da receção que é contextual e sociopoliticamente determinada (mesmo que na democracia ela se almejar consentida), tornando uma parcialidade empoderada e aparentemente empoderadora numa totalidade.

A crítica, por não ser polifónica, também porque o espectador comum ausenta-se frequentemente da função de dar voz à potência da criação, posicionando-se tantas vezes na mudez – posição confortável e desresponsabilizada ou temerosa, sintetizada num simplificado “gostei”, ou “não gostei” (lá está, o valor) – constitui-se assim como o papão em termos de autoridade pouco dialógica. Estremece. Nas placas tectónicas a crítica de fuga não pretenderá ser essa “crítica curatorial” do que deve ser e, por isso, profanamos a crítica para devolver ao comum a possibilidade da sua dessacralização.

O problema é sempre o posicionamento de Deus-coisificado no seio do papel que cada um tem nas artes (veja-se o recente posicionamento do “Deus-curador”, ou do “Deus-programador”, pouco abonatório para os projetos emergentes). A democracia chama-nos e por isso, por mim, inspirado no fluxo de Rancière, vimos aqui tomá-la como espaço predileto de quem joga o seu papel de espectador emancipado, na produção de um mundo plural pelo sensível – menos julgamento e mais o assumir da sua posição entrelaçada no círculo mágico que constitui a arte da performance, numa perspetiva de construir as grelhas de análise percetivas de um encontro artístico e sociopolítico, e assumir a forma como somos afetados e afetamos, ao nível do sensível e do pensamento, como um possível guia por vir.

Procurar, então, formas de relação emergentes que façam da realidade artística uma ficção persuasiva da existência em conjunto, um trabalho de tradução das traduções enquanto encontro que, no meu caso específico, gostaria que se conectasse com o pensamento crítico e experimental, cruzado com os saberes socio-humanísticos. Interessa, então, o como perceber determinada lente do mundo que clarifique ou ensaie novas relações com as coisas da vida individual e coletiva ou, por outras palavras, entrar num diálogo do mundo e das suas possíveis cosmovisões, que nos abram novas perspetivas de ser-estar através da arte.

A crítica é chique mas aparece cerceada nos efeitos do que a constitui como reação, talvez porque apenas ande à procura dos buracos (mais uma vez, o valor). E isso, em Portugal, só poderá ser sintoma do que poderei chamar por um défice de democraticidade crítica, mais pelas consequências institucionais do que é ter ou não ter uma crítica do que pela crítica per se (todos são, afinal, livres de escrever a sua posição). É que a crítica não deixa de ser uma voz que dá voz e isso, na sua dimensão valorativa pode alimentar a cultura como mercadoria das conveniências, poluindo o debate do lado criativo quando se posiciona enquanto trincheira.

A crítica solilóquio minou o diálogo enquanto espaço predileto da democracia, diria, pela sua propensão totalizadora e pouco aberta à experimentação (como se o mainstream contentasse a precariedade do ofício). O próprio espaço onde ela é publicada tornou-se mediador do empoderamento que vislumbra, por vezes cegamente, ou às apalpadelas no circuito do preconceito. Embarcamos, então, na tarefa profanadora sem, contudo, nos posicionarmos como críticos de profissão, ou como críticos do valor. Assim, reage-se ao tema do festival Linha de Fuga, propondo uma ação experimental, a crítica de fuga. Fuga será, portanto, sinónimo de entusiasmo para, no buraco, o fole poder tomar o ar – sabendo, porém que se a intenção é tapá-lo, como disse o poeta, outro buraco se vai abrir.

A economia e a política da crítica só poderá, então, ser o espaço da dádiva, da criação de um pensamento que produz um comum, à maneira também de Steiner (como lembrou Carina Correia nas conversas do grupo), em que a crítica deve brotar de uma dívida de amor, plasmando as portas da nossa perceção e pressionando a arquitetura das nossas crenças com seus poderes transformadores, como ele nos diz. Falar por si para a criação de um comum é, parece-me, o que queremos ensaiar. Neste grupo informal, vimos de diferentes contextos, alguns de nós nem nos conhecemos, e é essa informalidade que se tornará, talvez, o território da profanação em marcha, para uma democraticidade crítica no horizonte.

A crítica, afinal, é efetivamente essa procura do afeto profundo no seio do encontro. Pensar em conjunto será, então, a lição mais profícua do que é a democracia, uma criação de comuns que se consuma enquanto dádiva. E como sabemos, a dádiva é horizontal e não aceita favores nem obrigações. O ego é sempre empoderado pelo outro que nada pede em troca e, como tal, vibra com esse empoderamento sensível acolhido. Por isso, talvez nem a valoração (ideológica e estética) que subjaz ao conceito da crítica será pertinente para a posição que assumimos. A crítica de fuga procurará a expressão do encontro no tom da troca e, provavelmente, constitui-se mais como uma pedagogia radical desse encontro. A fuga deve sempre ser para a frente, nas curvas simbólicas da nossa diferença.

18-09-2020


Este texto integra a coletânea produzida pelo grupo Crítica de Fuga, que acompanha os trabalhos dos artistas e as atividades do Festival Internacional de Artes Performativas – Linha de Fuga.