O drama sertanejo de Bacurau

O caríssimo, precioso mesmo, colaborador da Revista Kuruma’tá, o poeta potiguar Nonato Gurgel, escreveu belamente sobre o filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O texto foi publicado originalmente da página do poeta, mas a Kuruma’tá faz questão de também publicar um conteúdo que só ilumina suas páginas. Vale demais a leitura.

Texto de Nonato Gurgel


Sônia Braga em Bacurau – Foto de Victor Jucá

I – Urbi rural

O premiado filme do Kleber Mendonça (Aquarius) e Juliano Dornelles começa leve, pegada rural, movimentos suaves de pontinhos brancos, na tela escura, que lembram as estrelas de Star Wars. Na abertura, Gal Costa canta ‘Objeto não identificado’, enquanto voamos de olho nos céus iluminados de uma cidadezinha do interior de Pernambuco.

Sertões potiguares e paraibanos servem de cenários para este western nordestino. Onde rola sangue e a vida parece por um triz, Sonia Braga aparece pelo avesso, subverte expectativas, assim como a narrativa, cujos fios demoram na tessitura ou, às vezes, parecem dizer outra coisa, restando ao senhor espectador refazer suas escolhas. Ao contrário do que anuncia a mídia, não acho um filme fácil.

II – Nova Canudos?

A médica Domingas, vivida por Sonia, em nada lembra a doce Clara de Aquarius, mas parece ser solidária, como são solidários os demais habitantes de Bacurau – uma mini cidade com nome de pássaro, ‘uma nova Canudos ou uma Canudos genérica, pronta para explodir’. Bacurau é um lugar que chega até a desaparecer do mapa, mas que sobrevive à margem dos poderes.

Quem demora a desaparecer, na mente do espectador, são os corpos desse drama sertanejo repleto de signos urbanos e referências culturais, como o cangaço e os beatos. Os rostos da pernambucana Lia de Itamaracá e do vilão vivido pelo alemão Udo Kier (Melancolia), dentre outros, formatam a diversidade étnica e identitária dessa margem, cuja trilha sonora parece incluir até o barulho das armas. Margem que subverte, parodia o Brasil do desmonte, nossas violências sociais e subjetivas hoje.

III – Você quer viver ou morrer?

Armas, drones, armas, mapas, armas, motos, armas, telas, armas, corpos que caem. O que diz esse excesso de corpos armados e de corpos derrubados? Neste faroeste de takes à lá Sergio Leone e Glauber Rocha, todos podem perder ou cair. Podem também desaparecer, aprender a ficar invisível, mas vence a porção-Tarantino dos dois diretores. Eles disputaram com Almodóvar (Dor e Glória), dentre outros cineastas, e venceram o Prêmio do Júri em Cannes (antes deles, somente o Anselmo Duarte ganhou, em 1962, com o filme O pagador de promessas).

Neste drama que atualiza o imaginário rural e mistura terror, guerra e ficção científica, é mister ser múltiplo, ambíguo, viver a profusão, o claro-escuro. Na treva, rege o grotesco. O grotesco que é, em Bacurau, o corpo em movimento. Corpo que ataca, atira ou serve de alvo, sem contemplação. O grotesco nas manchas do sangue nas roupas ao vento. No varal, no corpo, na terra, o sangue faz-se presente em tudo, e parece fazer a mesma pergunta o tempo inteiro, independente de gênero ou idade: você quer viver ou morrer?


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