Texto de Terêncio Porto
O ano é 2047. Há pouco iniciaram-se os leilões de memória, um novo pilar civilizacional. Ao constatarem a quantidade abissal de material afetivo perdido na nuvem, de pessoas falecidas – algo que em princípio parecia apenas um amontoado infinito e inútil de terabytes de lixo -, associado a apatia emocional de praticamente toda população existente, a partir da sugestão de um desses estagiários gênios recém contratados, com intermináveis insígnias reluzentes, próprias pra pronta admissão no mundo dos campeões, as grandes corporações inauguraram a novíssima modalidade de negócios. Como num reality show em que são leiloados armazéns abandonados cujos conteúdos são absolutamente desconhecidos, as pessoas rapidamente se afeiçoaram a novidade e começaram a comprar, em princípio a preços módicos, mas logo depois a preços exorbitantes, memórias alheias pra chamarem de suas. Fotos, vídeos, cheiros (o armazenamento digital de cheiros data de 2034), sons, tudo conteúdo pessoal e íntimo, 100% “original”. E dessa forma a ideia de simulacro se diluiu, na medida em que novas emoções deixaram de ser construídas, e praticamente a totalidade da população, em um tempo surpreendentemente veloz, aderiu e começou a viver e interagir com memórias de outrem, sem que pudessem escolher ou triar quais seriam estas (uma estranha sugestão do estagiário criador, mas que se mostrou uma das chaves do sucesso do novo negócio, a aleatoriedade da compra, só definida por tamanho, nunca por conteúdo.
— me vê 900 tera de novidades!
— mas 1000 dá desconto, senhor, não quer um pouco mais?
Memórias que dessa forma se tornavam hermeticamente originais, e relativizavam a própria ideia de simulacro.
Tive medo desse texto. E também tive a sensação de que pode ser assim. O medo aumentou.
Muito bom Terêncio Porto.