Lendário Livro | A poesia de Nonato Gurgel Revista Kuruma'tá, 5 de julho de 202028 de julho de 2020 Poemas de Nonato Gurgel para o Lendário Livro Hoje perdemos um amigo, que se foi cedo demais. Que tempos terríveis esses que vivemos, de tanta perda. Nonato Gurgel era um poeta, um homem gentil, inteligente, sensível… tudo que não se pode ser nesse país embrutecido. Ser quem era fazia dele uma revolução. Escrever era seu ato de resistência. Escrever, ensinar, falar de um livro inesperado, representar tão bem sua cidade, Caraúbas, neste mundo. Recordo demais o dia em que Numa Ciro falou de você, Nonato, de chamá-lo para participar do nosso Lendário Livro. Nunca esquecerei disso. Recordo também de eu e Aderaldo Luciano estarmos na Carioca, no nosso templo, e nos perguntarmos… Rapaz, cadê Nonato?! Cadê você, Nonato? que falta fará Nonato e suas chamadas pelo messenger, para propor textos para a Revista. Nossa, que vazio na Kuruma’tá. Preenchê-lo, em honra a você, com mais poesia, com mais amor contra o ódio que parece reinante. Não sei se você nos ouve, mas obrigado, Nonato. Por ser poeta e amigo. Revista Kuruma’tá TRECHO DO PREFÁCIO DE HELOÍSA BUARQUE DE HOLLANDA PARA O LENDÁRIO LIVRO Na sequência, leio um dos melhores poetas de hoje em dia, Nonato Gurgel. Vem de Caraúbas, Rio Grande do Norte. Com ele, o Nordeste corre em outra direção. A paixão, aqui, é o sertão. Um sertão todo seu, já presente em outro livro de poemas que escreveu, o miniSertão. Sobre essa poesia, escrevi: Nonato se espanta com pequeníssimas micropartículas de um enorme sertão vivido, sonhado, lido, lembrado. Recados. As vozes intuídas de Machado, Clarice, Euclides, Guimarães, Guimarães, Guimarães. Conversas todas urgentes. Releio. Sinto um prazer enorme em me deixar submergir num deserto mar de mitos, terra, livros, modernidade. O sertão moderno, visceral sempre. Esse é o Nonato, poeta que leio, que tanto admiro. Sua dicção poética lida em seu conjunto, ecoa, em certo viés, pelo menos assim o leio, o sonho da precisão de outro nordestino que não cansamos de reler, o megapoeta João Cabral. Aqui, nos dá uma chave de leitura, nestes versos dedicados à Numa Ciro: “Sertões do Ceará, 1858 / Depois daquela mulher / decidi falar com cactos.” Sem intermediação, o poeta fala com os silêncios do sertão. Suas emoções, seus amores e desejos pertencem àquela paisagem e se integram na encostacoração firmena imobilidade do campoonde amor rola e chamacães e outros vícios O que é mais interessante na poética de Nonato, além de sua dicção esculpida na pedra, é uma ideia contínua de retorno, de recomeço, como a idade do sertão que se faz e refaz, ou de seu desejo de retorno ao sertão. Como dizem os versos: Adoro reler esse evangelho:existe o recomeçar humanosempre só como nas Noitesde Flores de Cabíria do Sertão É muito curioso observar como a Bíblia e os evangelhos (ou sua épica trágica) aparecem com grande frequência não só na poesia, como também na ficção nordestina. É o sentimento de saga, de destino, de retorno que vejo tantas vezes explícito ou subliminar nos textos e metáforas de seus autores. Sinto como um narrar redondo que vem, recua e se desfaz. Como a eternidade que o sertão sugere. Dou a palavra para Nonato, amigo e poeta de longa data: NONADA Aquina encostacoração firmena imobilidade do campoonde amor rola e chamacães e outros vícioseste homemcalmoexperimentado pelas vacasque mastigam o obscuroe assumem o seu crimefoi tomado pela alegriadepois de rompero escuro molefeito de bichosque se movem Tomado pela alegriadepois de mastigaras vacas obscurasele viuque algo acrescereverdece ou se faztoda vez que elerelê ou repeteo recomeço:nonada BAIXO BAIXADA Sob o céu da Posse, Prometeu lê Oxossi e suas armas de caçador. Aprendiz de fogo e flecha, broto aqui meio Sebá, sedução e morte. Sob árvores do Tinguá chove. Chovo na margem que atira perdeu! Aro, ao pé do vulcão, sem erupção e só, alguma prosa verde. A margem dilata lavas, narrativas farpadas. Farpas e fogos resvalam à flor dos trilhos na estação. O vale da ferradura surta. Deságua no velho Oeste. Sangra na Dutra. Quero mais desse lero de fragas e laranjais que bancam Letras, do desabrigo que resta no “aproveitador de palavra”. O poste dá um salve para os saraus das minas e os guias afetivos da página e do terreiro. Há tempos devoramos o canibal, é certo, mas ainda não fomos modernos na Confeitaria Três Nações, no Açougue Ideal, no Armarinho União. Tarde começamos a ler as cores da alma que brota no Baixo. INVENÇÃO DE ANTÓNIO Sertões do Ceará, 1858Depois daquela mulherdecidi falar com cactose carrapichos donde vimcantar desertos caetéssertões de Quixeramobim Ergo torres em Canudosproíbo furtos e mortesnuma dieta de culpase rezas prego contraa República e acolhoescravo e bicho da mata Pelo avesso saudosotrês raças condensoe cindido sei de coro Eclesiastes por ondeo ser da terra voasem sair do Belo Monte CARO EUCLIDES Tenho saudades daquela minoria ativaanterior a 15 de novembro…Carta de Euclides da Cunha, 1985Para Vivi W Na biografia de Pedro IIescrita por José Murilo lia dor de um cadete ao lançaraos pés do ministro o seu sabree o seu amor ao Brasil que erano fundo o amor a si mesmo Agora eu sei meu caro senhoralém de seres órfãos “exilados”o escritor e o imperador tinhamoutras coisas em comum comoo positivismo a monarquiaas viagens e a escrita epistolar A história registra em ambosuma certa dificuldade ao lidarcom os afetos mais cotidianose um jeito de polir a afliçãolendo Hugo e rostos ao redoranunciando luta e traição Tudo isso sem contara imensa falta de sorteque tiveram — caramba —o imperador e o senhorno trato com as mulheres:a dele mancava; a sua, traía ÚLTIMO POST P ALEXANDRA M Adoro reler esse evangelho:existe o recomeçar humanosempre só como nas Noitesde Flores de Cabíria do Sertão Com a alma cheia de barcose o verão no tênis agradeçoleiga em sandálias de rabichopor dividir comigo seus heróis e me deixar segurar na pontinhadessa canoa que o salvou e levaessa carioca sertaneja e amigade Sinhá Vitória e do deserto DA NATUREZA DAS LENDAS Variável como todo adjetivolendário quer dizer fantásticoalgo do mundo da imaginação“Imagina o Brasil ser dividido”como o lendário Saci-Pererêinvisível mas presente Vive o lendário Lampiãono nosso imaginário históricoficcional feito Zumbinotório como Conselheironão viu a lendária Pasárgadanem ouviu cantar a Yara Além do adjetivo fabulosolendário é também substantivocoleção de lendas num livrode poetas do Nordeste no reinovamos de viver de brisa,Anelina, no Rio O Lendário Livro foi editado em maio de 2018, pela Editora Rubra. NOnanoto Gurgel, Aderaldo Luciano, Numa Ciro, Toinho Castro e Braulio Tavares30 de maio de 2018 – Blooks Livraria – Rio de Janeiro A Lendário LivroNonato GurgelPoesiaRevista Kuruma’tá
Venho aqui externar minha tristeza pela partida deste grande EXTENSIONISTA RURAL, EDUCADOR E POETA, sei que você fará muita falta à LITERATURA, brasileira, mas graças a Deus tiver a felicidade de ter convivido com você inclusive com um encontro inesperado nas ruas do bairro da Gloria, este foi nosso último encontro, mas matamos a saudade que era enorme, tenho certeza que você abrilhantará a casa do PAI com muita poesia, até breve. Do colega e admirador Lindolfo Medeiros de Carvalho. Responder
Uma grande perda, Lindolfo. Mas deixa a memória de um homem gentil, sensível. Um grande amigo e poeta. Responder