Sobre fazer casas de papel com mãos trêmulas Revista Kuruma'tá, 11 de agosto de 202012 de agosto de 2020 Texto de Eduardo Frota Uma cidade qualquer, não importa. É mister saber que são três da madrugada e que, no canto do bar, encostada na parede mofada, há uma máquina daquelas de tocar músicas. Vai lá, pega uma moeda nos fundilhos dessa calça desalinhada e desbotada e escolhe uma. Deixa por minha conta a próxima rodada. É a hora do lobo – esse negócio meio assustador de estar desperto no horário em que sua velha mãe gostaria que você estivesse dormindo. É o limite entre a lucidez e a incerteza. Quando o tempo-besta se desamarra da gente feito uma linha frouxa na barra da sua melhor camisa de festa. Mente sã, corpo são. As mentiras que o seu corpo tenta esconder da sua mente são vis. É tudo em vão. Então estamos combinados. Vamos ouvir as nossas canções prediletas até ficarmos pobres de dinheiro e mendigos de espírito, bêbados de sono, irretocavelmente despenteados e com a boca cheia de fel e sal. A letra fala sobre um palhaço que anda em pernas-de-pau, mas que não consegue mais trabalho no circo porque seus membros todos tremem quando lembra que seus últimos números não provocaram sequer um sorriso. O seu nariz tá ficando vermelho por quê? Ah, sim. Deve ser alergia. O palhaço agora lamenta não conseguir fazer outra dobradura que não seja a de uma casa. O palhaço da música. Cachorro, pássaro, tulipa, pipa, carro, cavalo, desaprendeu tudo. Só lembra como dobrar uma casa no campo onde ele pode guardar seus discos, seus livros, seus camaradas de palhaçada e suas piadas sem graça. Numa cidade qualquer, não importa. É mister saber apenas que há um coreto bem no meio da praça. Os seus olhos estão ficando vermelhos por quê? As, sim. Deve ser afasia. Acontece que estão acabando as músicas e as moedas. Sempre acontece. E o que a gente faz com a dignidade que ainda nos resta? Ah, mas que merda! Agora é hora do solo de violão e a essa altura o palhaço já decidiu que vai virar domador de leão nessa vida. É uma função bem menos arriscada. Pior seria vender algodão-doce colorido na entrada. Puta que pariu, imagina? Seu nariz e seus olhos estão ficando arregalados por quê? Ah, sim. Deve ser a hora em que vão jogar sabão nos nossos pés e virar as cadeiras vazias de ponta-cabeça apoiadas em cima das mesas. Não, não quero rachar um táxi porque acordei fora de hora, meio lobo, só vou me desdormir mais tarde. Vou seguir a pé por aquela rua vazia ali que mais parece reflexo de espelho de banheiro. Um olho vermelho no picadeiro e o outro parado palhaço na Lua cheia. A ContoEduardo FrotaProsa poética